sábado, 11 de julho de 2015

20/10/1991 - Papa São João Paulo II. Visita Apostólica ao Brasil. Homilia de Salvador

HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II 
AOS FIÉIS DE SÃO SALVADOR DA BAHIA NO DOMINGO DAS MISSÕES
Domingo, 20 de Outubro de 1991

Nossa alma espera no Senhor (Sl 33 (32), 20). 

Senhor, esteja sobre nós a tua graça
”(Sl 22).

1. Assim reza o Salmista. Assim ergue a Deus o seu grito em nome do seu povo, do Povo que o Senhor e Deus verdadeiro escolheu e envolveu com sua graça. Muitas vezes, Deus deu a conhecer a este Povo a graça da sua eleição e vocação na história de toda a grande família humana. Dizia a este Povo: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair do país Egito, da condição de escravidão: não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20, 2-3). Assim falava Deus ao povo eleito estabelecendo com ele um Aliança e manifestando-lhe sua vontade, por meio de Moisés, no sopé do monte Sinai.

“Senhor, esteja sobre nós a tua graça”. Será só em nome do seu povo - Israel - que o Salmista eleva o seu grito ao Senhor? Não estará presente no seu grito a voz de todos os povos e de todos os homens em toda a terra? À espera do Senhor, não estão as almas de todos? Não esperavam pelo Senhor, o Deus verdadeiro, as almas de todos os homens e povos, que habitavam no grande Continente americano, antes mesmo que aqui desembarcassem os Apóstolos chamados pelo Senhor - os apóstolos da graça e da salvação?

2. “Esteja sobre nós a tua graça”...

A graça, isto é, o amor da divina eleição, abraça todos os homens no Verbo eterno: o Filho consubstancial ao Pai. Do Pai e do Filho, procede eternamente o Espírito, Sopro salvífico de amor, com o qual Deus envolve e penetra toda a criação e, de modo peculiar, as almas dos homens criados à imagem e semelhança de Deus.

Isso acontece, por obra do Filho que se fez Homem, o divino Emanuel: “Cresceu como um rebento diante dele e como uma raiz em terra árida” segundo as palavras do profeta Isaías (Is 53, 2). Cresceu na história da humanidade como o Filho da Virgem de Nazaré, Maria, a qual, em virtude do Espírito Santo, O concebeu e O deu à luz. N’Ele, o Deus eterno e inefável deu cumprimento às esperanças do homem: “O olhar do Senhor vela sobre quem o teme, sobre quem espera na sua graça” (Sl 33 (32), 18); em Cristo, Deus e Homem se deteve em cada homem “para livrá-lo da morte e nutri-lo no tempo da fome” (Sl 33 (32), 19).

Cumpriu-se tudo isso por obra da cruz, como anunciava o mesmo profeta Isaías, quando afirmava: “Aprouve ao Senhor prostrá-lo com padecimentos. Quando se oferecer, a si mesmo, em expiação... cumprir-se-á por meio dele a vontade do Senhor. O justo meu servo justificará a muitos, tomará sobre seu dorso suas iniqüidades” (Is. 53, 10-11).

Assim, pois, o Filho consubstancial ao Pai, Deus nascido de Deus e Luz nascida da Luz, como Homem nascido de uma Virgem, tornou-se servo: servo da santidade de Deus, servo dos desígnios eternos e salvíficos de Deus. Servo da nossa eterna salvação, de nós homens, de todos os homens.

Quando contemplamos o Crucificado, cumpre-se aquilo que Isaías profetizava. Aqui, diante de nós está Cristo: “Desprezado, rejeitado pelos homens, homem das dores”(Is 53, 3). Ei-lo diante de nós, o Cristo, servo da eterna salvação do homem, de todos os homens, povos e nações.

Deste modo Ele se tornou, como proclama o Apóstolo na Carta aos Hebreus, sumo sacerdote, o único sumo sacerdote de toda a história do Cosmos, da história do homem no mundo, em todos os Continentes.

3. Ao ordenar aos seus apóstolos com persuasiva clareza, “Ide” (Mc 16, 15), e ao assegurar-lhes “Eu estarei convosco” (Mt 28, 20), o Messias crucificado e morto, mas ressuscitado, os constituía, sem reserva e sem retorno, arautos, testemunhas e comunicadores da graça salvífica, outrora invocada pelo Salmista, prometida pelos profetas, agora garantida por Ele, Filho do Pai Eterno. Aos quatro horizontes correram os Doze, portadores da salvação e impelidos no mais íntimo de si próprios pela urgência de anunciá-la como “boa notícia” e como fonte de vida.

Também, às costas da América, há 500 anos, às costas da terra que chamaram Vera Cruz e Santa Cruz, antes de chamá-la Brasil, foram chegando em levas sucessivas, os mensageiros e ministros da graça da Salvação. Sacerdotes do clero diocesano, franciscanos e dominicanos, carmelitas e mercedários, beneditinos e jesuítas, precederam muitos outros. Eles assumiram corajosamente estas terras imensamente vastas, como campo de sua missão. Eles deram início, sem a mínima demora, à tarefa da evangelização por eles entendida como anúncio claro e explícito de Jesus Cristo, seu nome, sua pessoa, sua boa nova salvífica, suas normas de vida. Mas também para conviver com os habitantes destas plagas, defendendo seus direitos e promovendo sua dignidade de seres humanos. A gesta destes homens, teve rasgos de heroísmo, de solidariedade humana e, ao mesmo tempo, ardores de caridade sobrenatural, de fé contagiante, de zelo apostólico abrasador.

Evocando esta epopéia missionária da primeira evangelização aqui, neste solo generoso e sob o céu da Bahia, não posso deixar de pronunciar um nome que é todo um programa: o do Padre José de Anchieta, merecidamente cognominado “o Apóstolo do Brasil”. Eu tive a íntima satisfação de elevar às honras dos altares, beatificando-o na Basílica Vaticana, poucos dias antes da minha primeira viagem ao Brasil, este filho de Tenerife que, entrando na Companhia de Jesus e vindo pouco mais que adolescente à Terra da Santa Cruz, aqui viveu vida santa e apostolar, toda dedicada à educação humana e cristã dos índios em meio a sofrimentos e tribulações de toda ordem. Como Superior da Companhia, ele passou anos da sua existência nesta Cidade do Salvador, antes de morrer, consumido pela fadiga mais do que pela idade, junto ao mar de Reritiba, no Estado do Espírito Santo, que ontem visitei.

4. Aqui onde teve início e primeiros desdobramentos a obra evangelizadora, mais do que questionar o passado, devemos interrogar-nos sobre o presente. Mais do que perguntar-nos como foi, que obstáculos enfrentou, que limites e condicionamentos conheceu a primeira evangelização, devemos e queremos deixar-nos interpelar pela segunda evangelização da qual somos protagonistas.

A indagação que deve provocar-nos de modo particular neste Domingo de outubro, tradicionalmente consagrado às Missões, é uma das que registrei na recente Encíclica Redemptoris missio. Vós, baianos, homens e mulheres, anciãos, adultos, jovens, adolescentes e crianças, letrados ou de pouca instrução, vós, de que modo continuais a obra dos vossos pais na fé? Que é feito da missão e da evangelização, que deve apresentar-se como nova evangelização, em Salvador e na Bahia de hoje?

Aqui na Bahia oferece-se de imediato, evidente, iniludível, o “mundo” dos que se afirmam cristãos e católicos por origem familiar, pelos sacramentos que receberam, pela prática mais ou menos freqüente das normas e preceitos da Igreja. Entre eles, há os mais empenhados na comunidade eclesial, na sua vida e atividade, como também os que padecem da insuficiente formação religiosa e são, por isso, vulneráveis às superstições, ao sincretismo religioso, ao fascínio de grupos ou correntes religiosas incompatíveis com a fé católica. Este mundo religioso de grandes proporções, no qual se insere a complexa realidade da religiosidade popular com suas várias facetas, tem urgente necessidade de perseverante e cuidadoso atendimento e clama por ele com uma resignação urgida de dramático sofrimento espiritual.

Um outro “mundo”, não menos necessitado é dos indiferentes; dos que foram católicos num passado mais ou menos recente, mas por falta da presença ativa de Pastores, pela turbulência da vida, pela influência dos estudos e leituras, pela negligência, abandonaram toda prática religiosa. É muito grande o número dessas pessoas ligadas à sua fé original, somente pelo tênue vínculo de uma prática religiosa esporádica.

Há também o “mundo” dos marcados pelo ateísmo ideológico ou pelo ateísmo prático - do hedonismo e do consumismo -, pelo secularismo, pela total ausência de um referencial religioso. Fazem parte deste “mundo”, predominantemente elementos das classes superiores, sobretudo jovens ou jovens-adultos das Universidades, engajados em atividades decisionais na sociedade. Sente-se a urgente necessidade de inserir o Evangelho neste “mundo” do qual, queiramos ou não, provêm em grande parte os grandes rumos da vida política, social, econômica e cultural de uma Cidade, de um Estado, de um País.

5. Mas o Domingo das Missões, desperta na nossa consciência também o dever missionário “ad gentes”.

O senso desse dever, quando vivido com certa plenitude, produz hoje um resultado: as Igrejas mesmo pobres, dão da sua pobreza a outras mais pobres ainda. Neste sentido, o documento de Puebla traz esta afirmação de enorme alcance: nosso Continente é missionário, no sentido de precisar ainda, e muito, da contribuição missionária de outros países. É missionário também porque, no interior do próprio País, missionários de uma região mais dotada de recursos e de pessoas dão a outras mais carentes; é missionário enfim, porque já se começa a enviar missionários “ad gentes” a outros Continentes.

Estou informado de que já centenas de sacerdotes, leigos e religiosos brasileiros aceitaram a missão “ad gentes” e hoje estão em terras distantes, comprometidos com a ação missionária em todas as suas dimensões. Ofereço o meu mais claro e vigoroso incentivo, de um lado ao programa “Igrejas-irmãs”, válido instrumento do mandato missionário no interior do próprio País, e, de outro lado, aos programas de “missões ad gentes” a partir do Brasil.

6. Sinto, neste ponto da homilia, o impulso interior de dirigir-me a toda a Igreja peregrina no Brasil inteiro. Peregrina nos Estados e Territórios que não me foi ainda possível visitar, a cujos Pastores, Governantes e Povo envio daqui a minha Bênção Apostólica mais escolhida: o pequeno e querido Sergipe, geograficamente próximo da Bahia e eclesialmente unido no Regional Nordeste III, com sua Arquidiocese e dioceses sufragâneas. Acre e Rondônia, Amapá e Roraima. Peregrina em cada cidade, aldeia e povoação; em cada Comunidade Eclesial de Base, Paróquia e Diocese. Em cada fábrica, mina, gleba ou fazenda, escola ou universidade. Em cada família acalentada pela felicidade e pela alegria, ou batida pela dor e pelo luto. Peregrina nos hospitais e nas prisões, nos estádios e nos lugares de divertimento honesto e sadio. A esta Igreja peregrina na esperança, comunhão de fé, amor, oração e serviço mútuo entre Pastores e fiéis, exorto: “Sê no meio do mundo, testemunha fiel e confiável da imensa ternura de Deus para com a Humanidade!”.

À Igreja que se constrói cada dia na Arquidiocese de Salvador e no Estado da Bahia, ao seu Cardeal Arcebispo, Dom Lucas Moreira Neves e aos demais Bispos, Presbíteros e Diáconos, pessoas consagradas e leigos, quero deixar, por ocasião deste segundo encontro, a expressão da minha afeição e a minha Bênção Apostólica, especialmente para os mais pobres e carentes, os mais necessitados e esquecidos. O Filho de Deus, o Senhor do Bonfim, a cujos pés me prostrei em adoração esta manhã, abençoe Salvador e a Bahia, os responsáveis pelo bem comum e toda a população.

7. Encontrando-nos, pois, neste momento histórico - verdadeiro “kairos” - da evangelização e da missão “ad gentes”, é preciso escutar as palavras dirigidas por Jesus Cristo aos Apóstolos, e em particular aos dois filhos de Zebedeu, Tiago e João: “Podeis beber o cálice que eu bebo e receber o batismo com o qual sou batizado?” (Mc 10, 38).

Podeis tomar parte da cruz salvífica da redenção? Estais dispostos a perseverar sob o poder do Espírito de verdade, mesmo passando pelos trabalhos e sofrimentos, mediante o ministério da palavra e da caridade? Sob o poder do Espírito que se doa aos corações humildes e fortes?

E Cristo continua: Não penseis nas honrarias deste mundo, nas grandezas terrenas. “Quem quiser ser grande no meio de vós, deve tornar-se vosso servo” - servo de todos. “O Filho do homem, com efeito, não veio para ser servido, mas para servir e dar a própria vida em resgate por muitos” (Mc 10, 43-45).

Um dia Cristo perguntou aos Apóstolos: “Podeis?” - e estes responderam: “Podemos” (Mc 10, 39).

Hoje, o mesmo Cristo vos pergunta - a vós, baianos, a vós, brasileiros -, a vós que sois o Povo de Deus e a Igreja do Deus vivo: “Podeis colocar-vos, para o vosso bem e o bem de vossos irmãos e irmãs, ao serviço da minha palavra e dos meus sacramentos, da minha Boa Nova de salvação, ao serviço da Esperança que vim trazer e do Amor que vim acender para que abrase o mundo? Podeis, vós jovens, renunciar aos ídolos do ter, do poder e do prazer e dar testemunho de perfeita adesão a mim, aceitando seguir-me pelos caminhos da vida consagrada e do ministério diaconal e presbiteral? Podeis abraçar o chamado que, neste sentido vos faço: “Vem e segue-me!”, como diz a cada um dos Doze? Podeis entregar o melhor de vossa vida aos pobres, aos doentes, aos marginalizados, aos pecadores, aos distantes de Mim e de meu Pai?


Seja a vossa resposta também: “Podemos, Senhor! Não por nossa capacidade, mas por vossa graça. Podemos, tudo podemos em vós que nos dais força!”(Cfr. Fl 4, 13).

Nenhum comentário:

Postar um comentário