segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Diário de um pároco de aldeia.


Por Paul Medeiros Krause.

Uma das minhas melhores leituras dos últimos e de todos os tempos é certamente "Diário de um pároco de aldeia", do grande escritor francês, católico, Georges Bernanos, que curiosamente viveu um tempo no Brasil, na cidade de Barbacena, Minas Gerais, distante 170 km de Belo Horizonte. O livro, da É Realizações, conta com a primorosa tradução de Edgar de Godói da Mata Machado, saudoso professor de Introdução ao Estudo de Direito, neotomista, da Faculdade de Direito da UFMG, que possui um primoroso "Elementos de Teoria Geral do Direito".

Muito me agradaram as figuras utilizadas por Bernanos e seu estilo ácido, sincero e preciso. O seu diagnóstico sobre o cansaço, a mediocridade e o tédio do mundo burguês parece-me único. Não creio ter lido ainda coisa tão milimetricamente acertada.

Outra obra prima de Bernanos é o famoso "Sob o sol de Satã", que já adquiri, mas ainda não comecei a ler. Preferi seguir por "Joana, relapsa e santa", menorzinho, um opúsculo.

Há no "Diário" trechos verdadeiramente antológicos, impagáveis, terrivelmente precisos. Deixo-lhes uma pequena amostra, para abrir-lhes o apetite. Assim começa, magistralmente, a meu sentir:

"Minha paróquia é uma paróquia como as outras. Todas as paróquias se parecem. As paróquias de hoje, naturalmente. Ontem, eu dizia ao vigário de Norenfontes: o bem e o mal devem equilibrar-se numa paróquia, só que o centro de gravidade é colocado embaixo, muito embaixo. Ou, se se prefere, um e outro se sobrepõem, sem misturarem-se, como dois líquidos de densidade diferente. O padre riu em minha cara. É um bom cura, muito benevolente, muito paternal e que passa mesmo, no arcebispado, por um espírito forte, um tanto perigoso. Suas troças fazem a alegria dos presbitérios e ele as apoia com um olhar que desejaria vivo, mas que eu acho, no fundo, tão gasto, tão cansado, que me dá vontade de chorar.

Minha paróquia é devorada pelo tédio, eis a palavra. Como tantas outras paróquias! O tédio as devora sob nossa vista e nada podemos fazer. Um dia, talvez, o contágio tomará conta de nós, descobriremos em nós esse câncer. Pode-se viver muito tempo com isso.

A ideia me veio, ontem, na estrada. Caía uma dessas chuvas finas que nos penetram os pulmões inteiros e descem até o ventre. Do lado de Saint-Waast, a aldeia surgiu-me bruscamente, tão confusa, tão miserável sob o horrível céu de novembro! Vapores de água subiam, como fumo, de todas as partes e ela parecia ter-se deitado, ali, na relva húmida, como um pobre animal cansado. Que coisa pequena, uma aldeia! E essa aldeia era minha paróquia. Era minha paróquia e eu nada podia fazer por ela; via-a tristemente mergulhar na noite, desaparecer... Mais alguns momentos e já não enxergava minha paróquia. Nunca havia sentido tão cruelmente sua solidão e a minha. Pensava no gado que ouvia mugir em meio à cerração e que o vaqueirinho, de volta da escola, maleta debaixo do braço, ia conduzindo, através do pasto úmido, para o estábulo quente, cheiroso... E ela, a pequena aldeia, parecia aguardar também -- sem grande esperança --, depois de tantas noites passadas na lama, um dono que a conduzisse para algum lugar improvável, algum inimaginável asilo.

Oh! bem sei que tudo isso são ideias loucas, que não posso tomá-las inteiramente a sério, sonhos apenas!... As aldeias não se levantam, à voz de um aluno de grupo escolar, como os bois. Não importa! Na tarde de ontem, acho que um santo a tinha chamado."

Aqui, caro leitor, logo na sequência, vem o diagnóstico terrível, o mais perfeito que julgo ter lido:

"Dizia a mim mesmo que o mundo é devorado pelo tédio. Naturalmente, é preciso refletir um pouco para dar-se conta disso; não é fato que se apreenda assim, de relance. É uma espécie de pó. A gente vai e volta sem o ver, respira-o, come-o, bebe-o; é tão tênue, tão fino, que nem ao menos range sob os dentes. Mas se a gente para um segundo, ei-lo que cobre nosso rosto, nossa mão. Temos de nos sacudir, sem cessar, para libertar-nos dessa chuva de cinza. Daí por que o mundo tanto se agita."

Prossegue o formidável autor:

"Dir-se-á talvez que, há muito, o mundo se familiarizou com o tédio, que o tédio é a verdadeira condição do homem. É possível que a semente espalhada por toda a parte germinasse, aqui e ali, em terreno favorável. Pergunto, porém, se os homens conheceram algum dia esse contágio do tédio, essa lepra! Um desespero malogrado, uma forma torpe de desespero que é, sem dúvida, como que a fermentação de um cristianismo desfigurado."


Fica aqui a dica ao amável leitor, recomendando-lhe que não demore a dar-se o prazer da leitura.

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