quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Deus é um seio – Narrativas evangélicas.


 Por Sávio Laet


“Deus é um seio” e reclinado a este seio – diz São João no Prólogo do seu Evangelho – está o Filho: “O Filho unigênito, que está no seio do Pai” (Jo 1, 18). Segundo o mesmo evangelista, é por estar recostado no seio do Pai, que Ele – o Unigênito – pôde no-lO revelar: “Ninguém jamais viu a Deus: o Filho unigênito, que está no seio do Pai [qui est in sinum Patris], Este O deu a conhecer” (Jo 1, 18).

Com efeito, Cristo saiu do regaço do Pai, para nos dar a conhecê-lO; fazendo-Se homem (Jo 1, 14), como que deixou de ter onde reclinar a cabeça [Filius hominis non habet, ubi caput reclinet] (Mt 8, 20), a fim de que conhecêssemos que o Pai é um seio. Deixou o seio do Pai, para ser Ele próprio o seio onde pudéssemos reclinar a nossa cabeça. E reclinamos a nossa cabeça em Cristo na Eucaristia. De fato, conforme atesta São João, foi durante a Ceia que, a pedido de Pedro, “Ele (João), então, reclinando-se sobre o peito de Jesus [supra pectus Iesu]” (Jo 13, 25), abriu-lhe o coração e Este lhe revelou quem seria o Seu traidor. Sim, assim como Cristo pôde revelar-nos o Pai, porque estava reclinado em Seu seio, assim, quem melhor nos pode revelar Cristo é aquele que se reclinou sobre o Seu peito: João. Por isso, já Orígenes dizia: “A flor dos evangelhos é o evangelho de João (...)”[1]. Depois dele, Agostinho, citando Simpliciano – Bispo de Milão – afirmou acerca do Prólogo do quarto Evangelho:

O princípio desse Evangelho, intitulado segundo João, certo platônico, como costumávamos ouvir da boca do santo ancião Simpliciano, mais tarde bispo da Igreja de Milão, dizia dever ser escrito com letras de ouro [aureis litteris] e pregado por todas as igrejas nos lugares mais destacados.[2]

Agora bem, como tão preclaro arauto da Encarnação definiu Deus? Definiu-o com estas breves palavras: “Deus caritas est”, “Deus é amor” (I Jo 4, 8)


E como era o coração manso e humilde (Mt 11, 29) de Cristo – Deus humanado – que João nos deu a conhecer? Basta lançarmos um olhar sobre os Evangelhos e testificaremos que o coração de Nosso Senhor era um coração, de fato, amoroso, que não se prendia a rituais. Na cura daquele que era paralítico, por exemplo, Jesus se encontrava pregando. Havia ali uma espécie de “liturgia da palavra”, mas que foi interrompida subitamente, quando quatro homens – decerto desconhecidos – abrindo o teto, desceram aquele doente, que jazia num catre. Qual a reação de Nosso Senhor? Disse ele, como vocês ousam me interromper enquanto estou pregando? Não! Antes, narra-nos o evangelho: “Jesus, vendo sua fé [videns Iesus fidem], disse ao paralítico: ‘Tem ânimo, meu filho; os teus pecados te são perdoados’ (Mt 9, 2). Na verdade,  Cristo parou o que estava fazendo para ver a fé daqueles homens; e, ao desconhecido que padecia, comunicou uma confiança filial [Confide, fili: confia, filho]. Perdoou-lhe os pecados e curou-o. A liturgia fora interrompida? Também não. Foi transformada.

Na primeira multiplicação dos pães, Nosso Senhor havia-se retirado para um lugar deserto, a fim de descansar. Entretanto, quando surpreendido por uma multidão que o seguira, tomou-se de ira contra eles? Não! Ao contrário, “(...) viu e ficou tomado de compaixão por eles (...)” (Mc 6, 34). Novamente, o olhar de Jesus ultrapassou as circunstâncias, venceu o cansaço e gerou nEle compaixão. Nosso Senhor reagiu com amor. Deu-se, então, a liturgia da multiplicação dos pães, cujo termo foi o homem saciado. O amor de Jesus era um amor que tirava o medo. A mulher que sofrera do fluxo de sangue, trêmula de medo por haver quebrado uma lei da pureza judaica, Cristo não a lançou fora, quando esta se apresentou ante a Sua indagação – “Quem me tocou?”; antes, acolheu-a cordialmente: “Minha filha, a tua fé te salvou; vai em paz [...]” (Mc 5, 14).

A segunda multiplicação dos pães também diz-nos algo. Cristo tinha um juízo prudencial destacado; sabia que podiam desfalecer pelo caminho os que o seguiam. Acerca da multidão, disse aos discípulos: “Não quero despedi-la em jejum, porque receio de que possa desfalecer pelo caminho” (Mt 15, 32). Nosso Senhor não olvidava a carestia dos que O seguiam; compadecido, ocupava-se de provê-los: “Tenho compaixão da multidão, porque já faz três dias que está comigo e não tem o que comer” (Mt 15, 32). Destarte, o divino Mestre não era um “espiritualista desencarnado”.

Anunciar a boa nova é necessário,
mas se retirar espiritualmente é essencial.
Ao devolver à vida a menina de Jairo, aos responsáveis por ela, não deu novas instruções, senão apenas “[...] mandou que lhe dessem de comer [iussit illi dari manducare]” (Mc 8, 55). Não era tampouco insensível à fadiga que sobrevinha aos seus próprios discípulos depois de uma jornada de trabalho; ao contrário, convidava-lhes ao afastamento para um momento de descanso: “Vinde vós, sozinhos, a um lugar deserto e descansai um pouco” (Mc 6, 31). Aliás, o próprio Senhor sentia cansaço, a ponto de, certa feita, na barca com os seus discípulos, ter Ele dormindo e não ter acordado sequer com uma tempestade e com a ameaça de a barca afundar-se... Diz o texto de Marcos: “Sobreveio uma grande tempestade de vento [procella magna venti= procela de vento forte], e as ondas se jogavam para dentro do barco e o barco já estava se enchendo. Ele estava na popa, dormindo sobre um travesseiro [supra cervical dormiens]” (Mc 4, 37-38).

Jesus abraçava [complexus= aperto, abraço] as crianças (Mc 9, 36; 10, 16), e parecia, outrossim, possuir uma visão periférica aguçada, pois não deixava ninguém à margem; por ocasião da cura do homem de mão atrofiada, o Evangelho acena-nos para o Seu olhar apurado e para a Sua tristeza pela dureza dos corações reticentes. Assim, diz-nos a narrativa: “Repassando sobre eles um olhar[3] de indignação [cum ira= com ira] e entristecido pela dureza do coração deles[4] [...]” (Mc 3, 5). Percebamos que, neste passo, Nosso Senhor revela um prognóstico bizarro: mais doente do que o homem de mão atrofiada são os que repelem o bem da sua cura em nome de uma ritualística, a saber, a guarda do sábado. Doentes são os que não sabem amar!

"O amor interrompe o luto!"
Ante o enterro de um menino – filho único de uma mãe viúva – Cristo vê a dor daquela mãe que ficara sozinha e comove-Se. Ora, comovendo-se, diz à mãe para parar de chorar. O Amor interrompe o luto! Afirma o Evangelho: “O senhor, ao vê-la [a mãe viúva], ficou comovido e disse-lhe: ‘Não chores” (Lc 7, 13). O termo latino para “não chores” é “non flere”. Agora bem, a palavra “flere” evoca choro, lamento. Dela também vem o adjetivo “flebilis”, que indica algo lastimável, doloroso, triste, que nos entrecorta a voz por nos fazer debulhar em lágrimas. Provavelmente aquela viúva estava soluçando, ou seja, fracionando as frases por causa dos soluços de dor. Pois bem, Nosso Senhor, ao ver aquela mãe, naquele estado, já sem voz por causa das lágrimas, compadece-se; ao pedir para ela parar de chorar, demonstra, sem mais, que não queria que ela permanecesse assim. O amor refrigera a dor que pesa. Cristo não ficou indiferente àquele fato, não continuou a Sua caminhada como se nada estivesse acontecendo. Antes, parou diante daquele acontecimento triste e daquela mãe que se lamentava, tirando-a daquela situação. O amor para, para amar.

Observemos mais de perto o que diz o referido texto: “Seus discípulos e numerosa multidão caminhavam com ele” (Lc 7, 11). Todavia, aproximando-se daquela cidade, ao deparar-Se com aquele cortejo e ao saber do drama daquela mãe, o texto frisa que, “ao vê-la”, Jesus comoveu-Se, ou seja, perturbou-Se, agitou-Se com aquela situação. Não ficou indiferente à dor, nem insensível àqueles que estavam passando por ela. Não ignorou o sofrimento atroz daquela mulher. A expressão traduzida por “ficou comovido” é “misericordia motus”, a qual indica que Nosso Senhor interrompeu a sua trajetória, “quebrou o protocolo”, porque se deixou mover por Seu coração. O amor pelo miserável era o móvel da Sua vontade; a sua força motriz era o amor. Diante da miséria humana, o caminho de Jesus era traçado pelo Seu coração. Além disso, ainda na sobredita página, olhar e sentimento se intercalam; entrelaçam-se porque Nosso Senhor via com os olhos do coração! A propósito, havia tanta coisa para Ele olhar naquela circunstância: uma numerosa multidão à Sua volta, um caminho todo pela frente. No entanto – compadecido pela miséria humana – manifestada no pranto daquela viúva, parou diante daquele acontecimento trágico. A sua força motora – ratificamos – era o amor!

Coragem, pois Deus nunca te desanima.
O Senhor era movido pelo seu coração; Seu olhar penetrava o íntimo da pessoa! Amor que encoraja[5], Deus nunca nos desanima. Cristo não participava da conversa dos que disseram a Jairo: “Tua filha morreu; não perturbes mais o Mestre” (Lc 8, 49). Contudo, de ouvido seletivo aos que podiam desanimar-se diante de uma notícia que parecia definitiva, narra-nos São Lucas que, “Jesus, que havia escutado, disse-lhe: ‘Não temas, crê somente, e ela será salva” (Lc 8, 49 e 50). Na verdade, Ele antecipou-se a Jairo, que, ao saber da morte da filha – alquebrado – poderia mesmo dispensá-lO da caminhada e desfalecer pela descrença. Mas o que Ele haveria de fazer por Pedro – “[...] orei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça [...]” (Lc 22, 32) – Ele fez, antes, por Jairo. Doravante, também Jairo poderia confirmar os irmãos, anunciando que Jesus não para nem diante da morte, nem a morte O detém. Como disse a Pedro, certamente deve ter dito a Jairo: “Quando, porém, te converteres, confirma teus irmãos” (Lc 22, 32). 

Seu amor era, por fim, exigente; dizia tudo e francamente. Primeiro, porém, sempre amava. NEle a palavra era fruto do amor. Foi assim com o homem rico. Antes de exigir-lhe abrir mão de todas as suas posses para segui-lO, relata-nos o Evangelho que, “Fitando-o”[6], Jesus o amou [...]” (Mc 10, 21). Provavelmente Cristo viu de antemão que ele iria recuar frente à radicalidade do Seu chamado; contudo, ainda assim, “dilexit=amou-o”. E só depois de amá-lo,“dixi=disse” (Mc 10, 21) algo.

Nosso Senhor nunca se recusava a amar. Ao contrário, primeiro amava e só depois falava! Sabia chorar pelos que amava. Por ocasião da morte do amigo Lázaro, quando lhe disseram onde o haviam sepultado, “Jesus CHOROU [Lacrimatus est Iesus= Jesus derramou lágrimas]” (Jo 11, 35). E os transeuntes daquele lugar não pestanejaram em dizer: “Vede como ele o amava [Ecce quomodo amabat eum= Vede de que modo amava ele]” (Jo 11, 36). O final da história já conhecemos. O choro e o amor de Jesus abriram o túmulo de Lázaro, colocaram-no para fora, pois o amor não é somente forte como a morte (Ct 8, 6), senão que é mais forte do que ela, é imortal, jamais se extinguirá: “A caridade jamais passará [Caritas numquam excidit= a caridade nunca morrerá]” (I Co 13, 8). Já dizia São João Crisóstomo: “Nada existe, certamente nada, que o amor não possa vencer”[7].

Ora, é com este amor que Nosso Senhor nos ama, com um amor sublime, que quer levantar-nos; vencendo o poder da morte em nós, deseja fazer-nos voltar a viver: “O amor de Deus, de fato, é o mais sublime que existe”[8]. Abramo-nos a este amor e deixemo-nos amar por Deus.


[1] ORÍGENES. Comentário a João. I, 6, 23. In: CANTALEMESSA, Raniero. O Mistério da Transfiguração. Trad. Alda da Anunciação Machado. Rev. Maurício B. Leal. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 64.
[2] AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 7ª ed. Trad. Oscar Paes Leme. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. X, XXIX, 2. p. 407. 
[3] O termo latino usado no texto “circumspiciens” (circumspetare) evoca um olhar em roda, um olhar em torno, no sentido de examinar, considerar e perceber o que está à sua volta. É um olhar atento ao que está em torno de. Circum: em volta de, em roda de; specio: olhar, mirar. Lembremos, por fim, que “respectus” – respeito – é, antes de tudo, um voltar o olhar com atenção: respectus ad aliquem: atenção para com alguém. O mesmo termo – “circumspiciens” – ocorre quando Jesus reconhece a sua verdadeira família como sendo aqueles que fazem a vontade de Seu Pai que está nos céus (Mt 12, 49).
[4] Contristatus super caecitate cordis eorum= contristado pela demasiada cegueira do coração deles
[5] Encorajar é levar uma pessoa a agir com coragem, isto é, a agir com o coração. Só um corajoso pode encorajar. Jesus era corajoso, agia com o coração, e, por isso, conseguia levar as pessoas que estavam com Ele a agir de coração. O amor nos encoraja, nos dá coragem!
[6] O termo latino é intuitio expressa o olhar em oposição ao simples ver ou a um mero passar com os olhos. “Intuitos”, portanto, é um olhar com atenção, com respeito; um olhar que considera, um olhar que examina. “Intus” é um advérbio que indica “no interior”, “dentro”, “interiormente”. Assim, por exemplo, “intus agere” significa um conduzir para dentro e “intus legere” [inteligência] um ler o interior. “Intuitus”, por conseguinte, significa um olhar para dentro, um olhar que penetra para além da superficialidade, que alcança e perscruta o “intimus”. Ora, “intimus” expressa, aqui, o superlativo de “intus”, que significa “um estar dentro de”, porquanto quer exprimir o que há no mais recôndito de alguém. Ademais, “intuitos” expressa ainda algo de imediato, sem intermediário. Neste sentido, o texto parece designar que Nosso Senhor, ao olhar para o homem rico, foi ao seu íntimo, direto ao seu coração: “[...] o Senhor vê o coração” (I Sm 16, 7).
[7] JOÃO CRISÓSTOMO. Homilias sobre a Carta aos Romanos. Trad. Mosteiro de Maria Mãe do Cristo. Rev. Iranildo Bezerra Lopes. São Paulo: Paulus, 2010. 9, 11. p. 176.
[8] Idem. Op. Cit

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