terça-feira, 30 de setembro de 2014

Direito natural e a prova empírica no marxismo.


Por Emanuel Jr.

A encíclica Rerum Novarum em seu número 5 começa manifestando a importância do direito natural.

Quem realmente está no centro?
Como uma encíclica social, aliás a base de todas elas no âmbito moderno, a Rerum Novarum monta toda uma sequência lógica para mostrar a impossibilidade do direito natural frente ao socialismo e consequentemente o paradoxo entre ser católico e ser socialista. A partir dessa encíclica várias vezes constou em outros documentos, homilias e audiências os motivos diversos dessa impossibilidade, incongruência e paradoxo.

A questão é ligeiramente simples, contudo difícil de entender devido a nossa grande contaminação marxista em nossa forma de pensar, ver o mundo, raciocinar e conceber a forma de se argumentar.

O marxismo em seu mais puro berço, o próprio Marx, tem em sua base o materialismo, ou seja, a impossibilidade de conceber qualquer prova que não seja empírica. A prova filosófica e a prova lógica são solenemente descartadas.

Assim sendo, o que não é provado empiricamente simplesmente não existe. Dessa forma, Deus não existe, pois não pode ser provado empiricamente. Conceber que tudo o que está a sua volta não pode ter resposta para a pergunta “quem os criou”, não pode ser entendido como prova se o raciocínio for puramente argumentativo lógico, em outras palavras: ninguém se importa com Sócrates e sua lógica.

Esse pensamento empirista e, podemos dizer, cientificista, vem crescendo desde o período consagrado como iluminismo. O iluminismo foi uma ruptura muito grande com o pensamento que tangia a época. Até então ciências filosóficas, sociológicas e teológicas eram consideradas ciências na gênese da palavra. Hoje são consideradas mais como formas individuais e variáveis e se direcionar um raciocínio.

Não se trata de teoria da conspiração.
Não se trata de imaginar que é uma teoria da conspiração que vem sendo orquestrada desde antes do iluminismo para preparar um socialismo latente que hoje vivemos e que tende e piorar, se arraigar e aprofundar cada vez mais daqui pra frente.

Trata-se de pensar logicamente: para o socialismo nascente era muito conveniente esse tipo de pensamento cientificista e empirista. Conveniente porque não se argumenta ou se prova Deus fora da filosofia e teologia, isso enquanto falamos de ciências. Obviamente que se experimenta Deus pela fé, pela contemplação e reflexão, mas dentro das ciências apenas dentro da filosofia e teologia, isso se a tivermos como coisas totalmente diferentes, o que muita gente não concorda. Assim fez alguns famosos conhecidos: Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, só pra falar sobre os mais comentados.

O Direito Natural, por sua vez, advém primordialmente de algo inscrito desde sempre no ser humano. Impossível pensar o direito natural como algo desenhado no homem após seu nascimento pelo contato com a sociedade, sem corromper esse direito em todos os seus níveis. Portanto, se essa inscrição vem com o ser humano, nada mais correto pensar que alguém ou algo fez essa inscrição. Sejamos sinceros e não vamos argumentar sobre o acaso. Acaso é o caminho fácil e não estamos dispostos a pegar atalhos errados e terminar o artigo por aqui.

Se alguém inscreveu isso no ser humano esse alguém é superior. Não vamos aqui nos ater ao Deus cristão, muçulmano ou judeu; apenas no que importa para essa argumentação: sua existência. Se Deus existe, existe algo após essa vida e existe hierarquia, já que não estamos no mesmo nível de um ser superior que nos cria. Se essa hierarquia existe em um nível superior, nada mais justo pensar que é impossível eliminá-la em um nível inferior. O nível inferior, nesse caso somos nós.

Enfim, afora as divagações, a prova empírica elimina Deus do caminho. Elimina porque uma ciência empírica falha nunca vai conseguir demonstrar a existência de algo superior e perfeito, a não ser que Ele se deixe revelar. Se Ele se deixar revelar, não será mérito dessa ciência empírica, mas sim uma simples concessão desse ser superior e perfeito. Aos que creem, sabemos que Deus não se revela dessa forma, portanto, sabemos que isso não vai acontecer por mais que a propaganda seja contrária a essa afirmação.

A prova empírica, eliminando Deus do caminho, abre as portas para o antropocentrismo, que por sua vez não pode aceitar o Direito Natural, caso contrário o homem não estaria no centro, mas sim a Natureza da qual esse Direito vem.


Nada mais cômodo para o socialismo crescente, portanto, eliminar com o Direito Natural através de um cientificismo que não leva ninguém a lugar nenhum, ou melhor, nos leva a simplesmente ignorar questões que sempre nos foram muito caras como ética, moral e liberdade de consciência.

sábado, 27 de setembro de 2014

21/09/2014 - Homilia em Tirana na viagem apostólica a Albânia. Papa Francisco..

VIAGEM APOSTÓLICA
DE SUA SANTIDADE FRANCISCO A TIRANA (ALBÂNIA)
SANTA MISSA
HOMILIA DO SANTO PADRE
Praça Madre Teresa (Tirana)
Domingo, 21 de Setembro de 2014


O Evangelho que ouvimos hoje diz-nos que, além dos Doze Apóstolos, Jesus chama outros setenta e dois discípulos e manda-os pelas aldeias e cidades a anunciar o Reino de Deus (cf. Lc 10, 1-9.17-20). Ele veio trazer ao mundo o amor de Deus e quer irradiá-lo através da comunhão e da fraternidade. Por isso, forma imediatamente uma comunidade de discípulos, uma comunidade missionária, e treina-os para a missão, para «ir» em missão. O método missionário é claro e simples: os discípulos entram nas casas, e o seu anúncio começa com uma saudação cheia de significado: «A paz esteja nesta casa!» (v. 5). Não se trata apenas duma saudação, mas é também um dom: a paz. Encontrando-me hoje no vosso meio, queridos irmãos e irmãs da Albânia, nesta praça dedicada a uma filha humilde e grande desta terra, a Beata Madre Teresa de Calcutá, desejo repetir-vos esta saudação: paz nas vossas casas, paz nos vossos corações, paz na vossa nação! Paz!

Na missão dos setenta e dois discípulos, revê-se a experiência missionária da comunidade cristã de todos os tempos: o Senhor ressuscitado e vivo envia não só os Doze, mas a Igreja inteira, envia cada batizado a anunciar o Evangelho a todos os povos. Ao longo dos séculos, nem sempre o anúncio da paz, trazido pelos mensageiros de Jesus, era acolhido; às vezes, as portas fecharam-se. Num passado recente, também a porta do vosso país se fechou, cerrada com o cadeado das proibições e prescrições dum sistema que negava Deus e impedia a liberdade religiosa. Aqueles que tinham medo da verdade e da liberdade tudo fizeram para banir Deus do coração do homem e excluir Cristo e a Igreja da história do vosso país, embora este tenha sido um dos primeiros a receber a luz do Evangelho. De facto, na segunda Leitura, ouvimos a referência à Ilíria, que, na época do apóstolo Paulo, incluía também o território da Albânia atual.

Repensando naqueles decénios de sofrimentos atrozes e duríssimas perseguições contra católicos, ortodoxos e muçulmanos, podemos dizer que a Albânia foi uma terra de mártires: muitos bispos, sacerdotes, religiosos, e fiéis leigos, ministros de culto de outras religiões pagaram com a vida a sua fidelidade. Não faltaram testemunhos de grande coragem e coerência na profissão da fé. Muitos cristãos não cederam perante as ameaças, mas continuaram sem hesitação pelo caminho abraçado. Em espírito, dirijo-me até junto daquele muro do cemitério de Escutári, lugar-símbolo do martírio dos católicos onde se efetuavam as fuzilações, e, comovido, deponho a flor da oração e de grata e indelével lembrança. O Senhor esteve junto de vós, irmãos e irmãs muito amados, para vos sustentar; guiou-vos e consolou-vos e, por fim, ergueu-vos sobre asas de águia como um dia fez com o antigo povo de Israel, como escutámos na primeira Leitura. Que a águia, representada na bandeira do vosso país, vos recorde o sentido da esperança, repondo a vossa confiança sempre em Deus: Ele não desilude, mas está sempre ao nosso lado, especialmente nos momentos difíceis.

Hoje, abriram-se de novo as portas da Albânia e está amadurecendo uma estação de novo protagonismo missionário para todos os membros do Povo de Deus: cada baptizado tem um lugar e um dever a desempenhar na Igreja e na sociedade. Que cada um se sinta chamado a comprometer-se generosamente no anúncio do Evangelho e no testemunho da caridade, a reforçar os laços da solidariedade a fim de promover condições de vida mais justas e fraternas para todos. Vim hoje aqui para vos agradecer pelo vosso testemunho e também para vos encorajar a fazer crescer a esperança dentro de vós mesmos e ao vosso redor. Não esqueçais a águia: a águia não esquece o ninho, mas voa alto. Voai alto! Subi às alturas! Eu vim aqui para vos encorajar a envolver as novas gerações; a alimentar-vos assiduamente da Palavra de Deus, abrindo os vossos corações a Cristo, ao Evangelho, ao encontro com Deus, ao encontro entre vós próprios, como já estais a fazer: com esta maneira de proceder encontrando-vos, dais testemunho a toda a Europa.

Em espírito de comunhão entre bispos, sacerdotes, pessoas consagradas e fiéis leigos, encorajo-vos a dar impulso à ação pastoral, que é uma ação de serviço, e a continuar na busca de novas formas de presença da Igreja no seio da sociedade. Em particular, dirijo este convite aos jovens. Havia muitos na estrada desde o aeroporto até aqui! Este é um povo jovem! Muito jovem! E onde há juventude, há esperança. Ouvi Deus, adorai a Deus e amai-vos entre vós como povo, como irmãos.


Igreja que vives nesta terra da Albânia, obrigado pelo teu exemplo de fidelidade. Não vos esqueçais do ninho, da vossa história que vem de longe, incluindo as provações; não esqueçais as chagas, mas não vos vingueis. Continuai a trabalhar com esperança para um futuro grande. Muitos dos filhos e filhas da Albânia sofreram até ao sacrifício da vida. O seu testemunho sustente os vossos passos de hoje e do futuro no caminho do amor, no caminho da liberdade, no caminho da justiça e sobretudo no caminho da paz. Assim seja.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O dia da Bíblia.


Por Dom Fernando Arêas Rifan
Bispo da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney

No próximo dia 28, último domingo de setembro, celebraremos o dia nacional da Bíblia, que coincide com a festa de São Jerônimo, o grande tradutor dos Livros Santos. Aliás, o mês de setembro é o mês da Bíblia, todo dedicado a despertar e promover entre os fiéis o conhecimento e o amor dos Livros Sagrados, a Palavra de Deus escrita, redigida sob a moção do Divino Espírito Santo, motivando-os para sua leitura cotidiana, atenta e piedosa. 

É de São Jerônimo a célebre frase: “Ignorar a Sagrada Escritura é ignorar o próprio Cristo”. Portanto, o conhecimento e o amor às Escrituras decorrem do conhecimento e do amor que todos devemos a Nosso Senhor.

O ponto central da Bíblia, convergência de todas as profecias, é Jesus Cristo. O Antigo Testamento é preparação para a sua vinda e o Novo, a realização do seu Reino. “O Novo estava latente no Antigo e o Antigo se esclarece no Novo” (Santo Agostinho).

Dizemos que a Bíblia foi inspirada por Deus, que vem a ser assim o seu autor principal, embora escrita por homens, por Deus movidos e assistidos enquanto escreviam.

A Bíblia não é um livro só, mas um conjunto de 73 livros, redigidos por autores diferentes em épocas, línguas e locais diversos, num espaço de tempo de cerca de mil e quinhentos anos. Sua unidade se deve ao fato de terem sido todos eles inspirados por Deus, seu autor principal e garantia da sua inerrância.

É o livro sagrado por excelência, escrito para o nosso bem. “Toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça. Por ela, o homem de Deus se torna perfeito, capacitado para toda boa obra” (II Tim 3, 16-17).

Mas a Bíblia não é um livro de ciências humanas. Por isso a Igreja Católica reprova a leitura fundamentalista da Bíblia, que teve sua origem na época da Reforma Protestante e que pretende dar a ela uma interpretação literal em todos os seus detalhes, o que não é correto.

Além disso, a Bíblia não é um livro fácil de ser lido e interpretado. São Pedro, falando das Epístolas de São Paulo, nos diz que “nelas há algumas passagens difíceis de entender, cujo sentido os espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos deturpam, para a sua própria ruína, como o fazem também com as demais Escrituras” (II Ped 3, 16).


Por isso, o mesmo São Pedro nos adverte: “Sabei que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação pessoal. Porque jamais uma profecia foi proferida por efeito de uma vontade humana. Homens inspirados pelo Espírito Santo falaram da parte de Deus” (2Pd 1, 20-21).  Assim, o ofício de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita (a Bíblia Sagrada) ou transmitida oralmente (a Sagrada Tradição) foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo, que disse aos Apóstolos e seus sucessores “até a consumação dos séculos”: “Ide e ensinai a todos os povos tudo o que vos ensinei... quem vos ouve a mim ouve”.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Verdadeiro e Falso Ecumenismo.


Por Carlos Ramalhete.

Se "Fora da Igreja não há Salvação", o que é o Ecumenismo?

Infelizmente esta é uma confusão muito comum, especialmente em certos meios ditos "progressistas"; esta confusão, na verdade, é fruto do chamado "relativismo", uma heresia já condenada pela Igreja muitas e muitas vezes.

Antes de mais nada, vejamos o que é o ecumenismo verdadeiro (não o da LBV...):

A palavra "ecumênico" sempre foi usada no sentido de uma reunião do conjunto dos bispos da Igreja. Assim, por exemplo, um Concílio que reúna os bispos do mundo todo é um concílio ecumênico, mesmo (e especialmente!) se não houver nenhum não-católico presente.

Infelizmente esta palavra começou a ser usada no fim do século passado para definir um movimento surgido nos meios protestantes, que busca fazer uma reunião meramente jurídica de todas as seitas protestantes (não devemos nos esquecer que na eclesiologia protestante a Igreja, com "I" maiúsculo, não existe visivelmente, sendo composta por uma união invisível de todas as seitas); assim este movimento pseudo-ecumênico, expresso por exemplo no Conselho Mundial de Igrejas, deseja fazer com que as seitas aceitem a validade, por exemplo, dos Sacramentos ministrados por outras seitas. No caso de seitas que não acreditem em sacramentos, o objetivo do movimento seria fazer com que admitissem que as seitas que acreditam são verdadeiramente "cristãs" no mesmo sentido que o são os membros de sua seita própria.

Ora, esta visão é incompatível com a Fé cristã. O protestantismo prega que a fé apenas salva, mas não se preocupa com a questão que evidentemente surge em decorrência desta crença: fé em quê? Para um protestante, trata-se de uma aceitação subjetiva de um "jesus" salvador, não de uma aceitação real d'O Jesus Salvador. Digo isso por uma razão simples de perceber: se cada um interpreta diferentemente a Escritura e acredita que o que Ele pede é uma coisa diferente do que outro protestante (por vezes na mesma seita!) acredita, não se está aceitando Jesus, mas sim inventando um "jesus" pessoal, um "jesus" que corresponde na verdade apenas às ânsias e preconceitos do "crente".

Assim Monique Evans e Tiazinha, por exemplo, crêem em um "jesus" que não vê absolutamente problema nenhum na difusão de pornografia, "jesus" esse radicalmente diferente, por exemplo, do "jesus" de uma senhora da "Assembléia de Deus", que não tira suas saias longas e não corta o cabelo.

Do mesmo modo o "pastor" Caio Fábio acredita em um "jesus" que permite o divórcio (em frontal contradição com as próprias palavras de Cristo registradas no Evangelho!), mas preocupa-se principalmente com problemas sócio-policiais da população favelada...

Para Monique Evans e Tiazinha, entretanto, Caio Fábio é certamente um cristão, e presumivelmente o contrário também é verdade.

Este é o "espírito ecumênico" do Conselho Mundial de Igrejas, que aliás já está tendo problemas graves devido a, por exemplo, a pregação pró-homossexualismo de algumas seitas que dele fazem parte, pregação essa que já provocou a saída de vários grupos deste Conselho.

A mensagem do falso ecumenismo é "tolerância", compreendida como na verdade mero indiferentismo: não importa em que "jesus" é a fé do "crente", importa que ele tenha fé.

O "ecumenismo" da LBV é aparentemente o paroxismo deste tipo de mentalidade indiferentista, mas na verdade o é apenas para consumo externo. Nas creches e escolas da LBV, por exemplo, as crianças são indoutrinadas na doutrina própria desta seita, que entre outras coisas ensina o reencarnacionismo, as várias revelação sucessivas (incluindo aí Allan Kardec e o próprio fundador da LBV), a inexistência do Espírito Santo (visto como uma reunião de "espíritos evoluídos"), etc.

Assim eles consideram que todas as religiões são aceitáveis, mas a verdade seria a pregada por eles. Como são reencarnacionistas, não vêem necessidade de confronto; afinal se o sujeito for um bom protestante, ou católico, ou macumbeiro, na "próxima encarnação" ele poderá ter acesso à verdade LBVista...

Estes falsos ecumenismos são totalmente diferentes da noção católica de ecumenismo. Já vimos que a palavra "ecumênico" sempre teve na Igreja a conotação de algo relativo a uma reunião de toda a Igreja, não de uma reunião interreligiosa. Vimos igualmente que o relativismo é algo totalmente contrário à fé cristã.

Como então se coloca o afã "ecumênico" da Igreja, no que diz respeito ao diálogo com os protestantes e cismáticos orientais?

Trata-se de, como Cristo, ir buscar à ovelha que está afastada, trazer para a Igreja aqueles que estão fora dela, quer formal quer materialmente. O Concílio Vaticano II pede, como norma pastoral, que isto seja feito partindo-se do que já é de conhecimento ou uso do herege ou cismático. Nisto o texto conciliar corrobora a imortal sabedoria do Doutor Angélico, S. Tomás de Aquino, que já dizia: "Ao debater com pagãos, uso a Razão; com judeus, o Antigo Testamento; com hereges, toda a Escritura".

Assim devemos perceber os reflexos da verdadeira Fé cristã que estão contidos em cada seita ou crença pessoal, para a partir destes reflexos incentivar o herege ao estudo para que ele perceba os erros e incoerências da falsa fé que tem.

"Ora", diria o indiferentista, "e os 'elementos de santificação' que existem nas seitas?" Respondo que eles existem, como podemos ver nos próprios documentos do Concílio, apenas em função da Igreja. Trata-se de, para usar uma parábola evangélica, migalhas que caem da mesa. Um batismo válido ministrado por uma seita protestante não é válido por ter sido ministrado por esta seita, mas sim apesar disto!

Assim um batismo válido ministrado por, digamos, uma seita pentecostal faz com que a pessoa que foi batizada torne-se não pentecostal, mas católica. Alguém que morra logo após um batismo válido ministrado por uma seita pentecostal morre como católico, e como tal é salvo.

Este pertencer invisível à Igreja, entretanto, não é garantia de salvação. Muito pelo contrário, aliás. Alguém que tenha nascido em um ambiente protestante, nunca tenha tido contacto algum com a verdadeira fé (situação evidentemente impossível no Brasil...) e siga a falsa fé em que foi educado após um batismo válido pode ser salvo, se, e somente se, ele nunca abandonar a Graça de Deus infusa pelo batismo.

Ora, como é abandonada esta graça? Pelo pecado mortal (pecado cometido deliberada e conscientemente em matéria grave). Assim a chance de um protestante se salvar está em não pecar nunca mortalmente após um batismo válido (e batismo é só uma vez: se ele foi batizado em criança é este o batismo válido; se o foi em adulto, não adianta reiterar o batismo: o segundo vale apenas por um banho sem sabonete...), seguindo assim sempre a sua consciência de forma irrepreensível e aceitando todas as graças dadas por Deus.

Ora, será que isso é comum? Será que é comum que uma pessoa, mais ainda, uma pessoa sem acesso ao Santíssimo Sacramento e fechada em um ambiente de mentiras e heresias, consiga sempre corresponder à graça de Deus de tal maneira que nunca, jamais peque mortalmente? Certamente que não.

Tal acontecimento é evidentemente raríssimo, mas pode existir. Devido a sua raridade e, mais ainda, à presunção em que implicaria confiar que ocorra tal comportamento, é um dever de caridade de todo católico buscar trazer à Igreja este pobre protestante, para que, tendo acesso aos Sacramentos e à Verdade, possa evitar as chamas eternas do Inferno.

A única outra chance que um protestante hipotético, nascido e criado sem contacto algum com a Igreja, poderia ter de salvar-se é uma perfeita contrição na hora da morte. O que é uma perfeita contrição? É um arrependimento completo de seus pecados, movido por um amor absoluto e perfeito a Deus. Por Deus vem o horror aos pecados, e Deus não deixaria de perdoar alguém que estivesse tão perfeitamente arrependido de seus pecados e a buscar a união com Ele.

Ora, o protestantismo desincentiva a contrição, vista por eles como demonstração de falta de fé. Afinal, eles acreditam que o pecado do homem é encoberto por Jesus, mas continua existindo; eles não acreditam em santificação do homem, mas acham que Cristo mente a Deus Pai, dizendo que o homem está sem pecado, para que ele possa entrar no Céu. Assim preocupar-se por um pecado cometido seria uma demonstração de falta de fé no "pistolão" celestial que os faria entrar no Céu mesmo sendo sempre pecadores. E é apenas, nesta heresia, a falta de fé que pode fazer com que alguém não seja salvo...

No caso de um católico que apostate e venha a ser, digamos, batista ou pentecostal, a situação é muito mais grave, assim como é gravíssima a situação de um protestante nascido em país católico (e que assim teve contato com a Verdade). Isto ocorre por uma razão muito simples: a Verdade atrai quem a busca, e a graça da conversão é sempre dada por Deus a todos, mesmo os piores pecadores.

O próprio fato de um católico apostatar da Verdadeira Fé e unir-se a uma seita é na verdade um ato de afastamento de Deus, de negação de Sua Graça. O nosso protestante hipotético que nunca tivesse conhecido a Igreja nem cometido pecado mortal, por exemplo, seria indubitavelmente alguém que, pela oração, pela caridade, pelos meios que estivessem a seu dispor, procurara sempre aceitar a graça de Deus. Este protestante hipotético, caso tivesse qualquer chance de contacto com a Igreja (nem que fosse pela TV ou pela Net), aceitaria a graça que Deus sempre está a oferecer a todos os pecadores e hereges e se converteria.

Assim um protestante em país católico ou, pior ainda, um católico que se tornou protestante é alguém que se negou a aceitar uma graça dada por Deus, escolhendo separar-se de Deus. Vemos assim como é perigosa esta situação. A pessoa escolheu, movido provavelmente por interesses outros (possibilidade de segundas núpcias, desejo de ser o árbitro final do certo e do errado - a exemplo de Adão e Eva no Paraíso...), abandonar a Cristo e inventar seu próprio "jesus", negando-se assim a aceitar aquilo que Deus pede dele e para o quê Ele oferece a cada instante os meios (a graça da conversão).

Mesmo que esta pessoa tenha cometido este ato (negar-se a aceitar a graça) sem ter consciência de seu erro, isto não deixou de ser um ato de separação de Deus. Trata-se de ao mesmo tempo a comprovação de uma negação provavelmente habitual da graça (posto que se ele estivesse habitualmente disposto a aceitar as graças dadas por Deus não teria negado a mais importante!) e uma decisão de não mais aceitar a reconciliação com Deus (feita pelo Sacramento que Cristo instituiu) após um pecado mortal que ele venha a cometer.

Além disso, provavelmente não durará muito para ele cometer um pecado mortal, visto o seu fechamento, doravante habitual, para a graça. Não podemos esquecer que é apenas pela graça de Deus livremente aceita que podemos não pecar; a nossa natureza sozinha nos leva a pecar. "Abyssus abyssum invocat", o abismo atrai abismo. Quanto mais a pessoa peca, quanto mais ela se afasta da graça de Deus, mais fácil se torna pecar.

O dogma (um dogma é algo que é Verdade Revelada, que deve ser crida por todo cristão; um exemplo disso é a Santíssima Trindade, Três Pessoas e Um Só Deus) nos afirma claramente que "Fora da Igreja não Há Salvação". Não é possível salvar-se fora da Igreja, que é a Comunhão dos Santos. Não é possível salvar-se em estado de pecado mortal, não é possível salvar-se em uma seita herética.

A eventual salvação de um herege vem de sua conversão ou, no caso de alguém que nunca, jamais, tenha tido acesso à Igreja, pela aceitação de todas as graças dadas por Deus, o que levaria a uma conversão caso ele tivesse a oportunidade; é a isto que se refere o documento *Diálogo e Anúncio* do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso: "Em muitos casos, eles já podem ter respondido implicitamente à oferta de Deus de salvação em Jesus Cristo; um sinal disto pode ser a prática sincera das próprias tradições religiosas, à medida que elas contêm autênticos valores religiosos. Podem já ter sido atingidos pelo Espírito e, de certo modo, estar associados, sem o saberem, ao Mistério Pascal de Jesus Cristo (cf. GS 22)."

É o caso de alguém nascido protestante ou até pagão, sem jamais ter tido contato com a Fé Cristã verdadeira, que tenha sempre, ao longo de sua vida, respondido "sim" a tudo o que Deus dele pediu, praticando sinceramente as práticas religiosas de sua comunidade, no que elas contém de conforme à Lei Natural. Assim alguém que tenha sido criado, digamos, em uma comunidade de adoradores de ídolos que fazem sacrifícios humanos não poderia jamais tomar parte nos ditos sacrifícios, abomináveis à luz da Lei Natural que todos nós já temos inscrita em nosso coração e que não precisamos aprender de fontes externas.

A associação deste hipotético pagão ou protestante com a Igreja, Corpo Místico de Cristo, ocorreria sem que ele o soubesse; sua resposta habitual de aceitação das graças dadas por Deus corresponderia, na Infinita Misericórdia do Senhor, a uma aceitação da oferta de Deus de Salvação no Cristo Jesus. Esta oferta só não foi aceita de forma explícita por não ter sido conhecida, pelo fato deste protestante ou pagão hipotético nunca ter visto um só católico em toda a sua vida.

Esta pessoa está assim unida de forma invisível à Igreja; ela está materialmente na Igreja, mas não formalmente, e só não está formalmente na Igreja por falta de oportunidade. Enquanto ela se mantiver dentro da Igreja, ainda que desta forma invisível, ela pode ser salva. Se um dia, porém, ela deixar de aceitar as graças dadas por Deus e pecar consciente e deliberadamente em matéria grave, ela só poderá voltar à Igreja se tiver uma perfeita contrição, já que não tem acesso ao Sacramento da Confissão.

Assim, portanto, é o dever de todo católico unir-se ao afã ecumênico da Igreja, buscando a conversão dos hereges e cismáticos, buscando trazê-los de volta à Igreja, fora da qual não há Salvação.

O Santo Padre João Paulo II, através de organizações com este objetivo, trata desta nobre missão no âmbito mais amplo, buscando fazer com que seitas e grupos cismáticos voltem à Igreja em bloco. Até agora já foram vários grupos a abandonar seus erros e voltar à fidelidade e obediência ao Romano Pontífice, condição necessária (ao menos implicitamente) para a salvação.

A nós cabe fazê-lo no âmbito individual, trazendo pessoas (amigos, conhecidos, vizinhos...) de volta à Igreja, de volta a Cristo, de volta à possibilidade de Salvação.

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

domingo, 21 de setembro de 2014

Deus, Filosofia e Vida - Uma primeira aproximação

Por Sávio Laet



“Amicus Plato, sed magis amiga veritas.” “Platão é meu amigo; a verdade, porém, é minha maior amiga.”

“As palavras soam apenas para que a coisa seja entendida.”[1]
  
O que mais nos instiga no ateísmo é que ele nasceu como um fenômeno cultural, quase imperceptível. Quando Nietzsche “declara” a “morte de Deus”, o que menos importa a ele é saber se Deus existe ou se Deus não existe. O que ele quer frisar é que, após séculos de teísmo, a cultura do seu tempo mostrava um homem “capaz” de viver privado de Deus. Com efeito, ἄ-θεος (á-theos), com o α privativo, significa “privado de Deus”. Não significa – a falar com máxima exação – negação de Deus, nem de alguém ou de uma época que seja “anti-Deus” (ἀντὶ-θεός), contra Deus. Significa apenas que uma pessoa ou uma época vive privada de Deus. O ateísmo não significa sequer que a pessoa não precise de Deus ou que não “goste” dEle, mas tão somente que ela vive, de fato, como se Deus não existisse. Neste sentido, nossa época, e nós mesmos – crentes e não crentes – estamos inseridos numa sociedade que “funciona” sem Deus.

Agora bem, no alvorecer do século XIX, houve uma reação contra o dado cultural do ateísmo. De fato, o homem é um ser que pensa e não pode ficar indiferente ao que o rodeia. Destarte os religiosos detectaram que a cultura – arte, ciência, literatura, etc. – não era mais cristã. O Concílio Vaticano I foi apenas uma dessas reações. Ora, ante esta reação, os que estavam não apenas vivendo, mas também construindo uma cultura ateia, reagiram. O que temos daí por diante? De um lado, o aprofundamento da apologética como um fenômeno religioso, isto é, diante da consciência de que estavam dentro de uma cultura ateia e de que era preciso reagir, os religiosos empenharam-se em provar a existência de Deus, ou seja, a afirmar – demonstrativamente – que Deus existe[2]; de outro lado, constatamos o nascimento de um ateísmo, desta sorte militante, ativista, porque consciente de si. O ateísmo passa a ser assim pensado e defendido e, aos poucos, vai-se transformando numa negação de Deus, ou seja, numa afirmação articulada de que Deus não existe. No meio dessa “confusão”, está justamente o protagonista da história: Deus. Eis O grande desconhecido, eis o único a quem poucas vezes foi dada a palavra. Ante Ele, o mais das vezes, crentes e agnósticos são igualmente pouco judiciosos. No meio de toda esta balbúrdia, é como se pudéssemos ouvir a voz de Agostinho:

Como podem odiar, se desconhecem? Se não conhecem o que ele é, mas têm a seu respeito qualquer outro conceito, não o odeiam, mas odeiam o que lhes parece que ele é, ou o que suspeitam erradamente.[3]

Se pensam ou crêem a respeito de Deus, não o que ele é, mas qualquer outra coisa, e tem ódio ao que pensam, não odeiam propriamente Deus, mas o que concebem de Deus na sua mentirosa suspeita e vã credulidade.[4]

De fato, a princípio, sentimos repulsa pelos ídolos, repelimos várias ideias acerca de Deus; repudiamos inumeráveis representações da divindade, mas não nos damos de que, o mais das vezes, destruímos ídolos para construirmos outros. E, quando se trata dos nossos ídolos, costumamos cometer um erro gravíssimo: tratamo-los como se fossem Deus. O mesmo Agostinho já sinalizava para este perigo em seu tempo. Ele costumava dizer que Deus não é o monossílabo tônico – ou as duas sílabas em latim – que pronunciamos de forma vã, mas sim uma realidade que de muito ultrapassa o sinal gráfico que a indica:

<Deus> não é apenas as duas breves sílabas com que exprimimos o seu nome, nem nós veneramos essas duas breves sílabas, nem as adoramos, nem é a elas que pretendemos chegar.[5]

De Deus pode dizer-se tudo, e tendo-se dito tudo, tudo fica longe de ser dito como deve ser.[6]

Não se nota pobreza maior do que quando se trata de dizer o que Deus é. Se procurais um nome conveniente, não o encontrais [...].[7]
Na verdade, não O conhecemos pela vibração dessas duas sílabas: De-us.[8]

O que seria um agnosticismo teológico?
É certo que Agostinho não quer fundar uma teologia negativa malsã, o que só o conduziria para outro abismo, a saber, o “agnosticismo teológico”. O que quer dizer é outra coisa. Antes de tudo, que devemos tomar cuidado com as nossas ideias; elas dizem, sinalizam, significam, mas não esgotam a realidade da qual são signos. Por isso, não devemos parar nelas. Elas indicam outra coisa, a saber, a realidade mesma da qual nascem. De mais a mais, devemos ter cuidado com a proveniência das nossas ideias. Em quais testemunhos estão fundadas? Como chegamos a elas? Enfim, para o nosso tempo, Agostinho deixa um questionamento muito eloquente: sabemos a quem estamos negando ou em quem estamos crendo? Porque, se negamos uma ideia que não corresponde a Deus – pensando que estamos negando a Deus – a nossa negação é vã. Outrossim, se cremos em algo que não é Deus, imaginando que é Deus, o nosso crer também é vã credulidade. Neste sentido, um crédulo pode ser um ateu sem o saber; igualmente, um ateu, que despedaça um ídolo a que chama Deus, pode estar acusando a pessoa errada. Por isso, é mister despedaçarmos os ídolos, a fim de descobrirmos – primeiramente – se somos ateus ou crentes autênticos. Assevera Agostinho:

Não O imagineis como se fosse um artesão que compõe, ordena, inventa, que modela e remodela; nem, tampouco, como um imperador sentado no trono real, brilhante e cheio de adornos e criando por decreto real. Despedaçai os ídolos de vossos corações.[9]

E a única maneira de nós nos colocarmos diante da questão de Deus e da real questão da demonstração da Sua existência, é assumirmos uma postura de transculturação. E o que é transculturação? De forma bem jocosa, é sair da “confusão”. Como fazer? Precisamos começar de algum lugar.

Ora, sempre nos intrigou o fato de, na contemporaneidade, o nome “Deus”, indiscriminadamente, ser grafado com “d” minúsculo em filosofia. Ao pensarmos sobre isso, fomos espontaneamente conduzidos para trás e para trás e cada vez mais para trás. Então, começamos a temer que, ao abordarmos a questão, por termos que regressar a um tempo tão imemorável, pudéssemos chegar a lugar nenhum. Daí surgiu-nos uma nova questão: como falar do pretérito sem sermos preteridos? Como falar do “passado” sem sermos defasados? Ora, a única forma – pensamos – de escaparmos a este perigo, seria demonstrarmos haver uma “linha imaginária” que perpassa toda a história da filosofia e que enlaça o passado ao presente de forma irrenunciável. Qual é esta linha imaginária? Deus em pessoa!

Deus é o cerne da questão, o centro supremo da vida.
Entretanto, resta a indagação: por que ninguém percebe que Deus é o cerne da questão? De súbito, podemos dizer: porque Ele é o “problema”. Mas reflitamos um pouco mais. Digamos desde já que a simples colocação da palavra Deus não nos insere apenas num tema religioso ou teológico – ou mesmo filosófico – mas também moral, cultural e sociológico. E onde estamos – melhor – de onde viemos quanto a estas valências? Viemos de dicotomias que não nos permitem mais sermos pessoas que pensem de forma integrada. E sem esta integração, Deus só pode ser negado ou olvidado, nunca encarado, sequer como uma possibilidade.

Mas tentemos entender melhor como isso se reflete em nossa época. Tomemos alguns binômios que nos ajudarão a compreender: verdadeiro/falso, veracidade/mentira, nesciência/ignorância e capacidade/competência. A verdade é a adequação do intelecto à coisa. Assim sendo, quando afirmamos, o cavalo de Napoleão é branco, não estamos a dizer que ele parece ser branco, mas que ele é branco. Afirmamos o ser, o que a coisa é. Nem podemos dizer – em estado de sanidade mental – que o Cavalo branco de Napoleão é preto. Ora, esta certeza de que estamos diante de um juízo que não diz respeito somente às leis da mente, mas que está em conformidade com a realidade, é o que propriamente chamamos verdade. Já se o assentimento não é firme, temos a opinião, o que indica que o juízo em questão carece de evidência. Ora, quando emitimos um juízo assim, geralmente dizemos: “eu acho”, “é provável”, “não creio”, etc.

A propósito, o que é a evidência? A evidência é aquilo que a inteligência não pode negar, nem deixar de admitir ser como é, e que exclui, por conseguinte, o contraditório como falso. Ela pode ser imediata ou mediata. Imediata é aquela evidência que dispensa demonstração. Assim, ao ver o sol, dizemos – sem precisar de ulterior raciocínio – é dia. Ela é mediata, quando precisamos demonstrá-la. Por exemplo, quando alguém afirma, depois de delongada demonstração, Deus existe, estamos diante de uma evidência mediada por uma demonstração. A evidência pode ser ainda espontânea ou refletida. Assim, o lavrador que diz, vai chover, mas não sabe dizer o “porquê”, tem uma evidência espontânea; já o meteorologista que diz, “vai chover”, e sabe dizer a razão, tem uma evidência refletida. Mas o fato que precisamos reter aqui é o seguinte. Quando afirmamos com evidência: isto é branco e não pode ser não branco, este juízo existe em nós como certeza da verdade, excluindo, portanto, o contraditório. Acontece que, quando esta evidência não existe, e não há firmeza no assentimento, encontramo-nos ante um juízo opinativo que não exclui o contraditório como falso. Assim, dizemos: é provável ou possível que esta moléstia não seja câncer, mas sem excluir, de todo, que possa ser. O médico pode, inclusive, ser da opinião que não seja câncer, mas, para “desencargo de consciência”, solicita o exame. Tomás já prevê este temor de que o contraditório possa ser verdadeiro: “A opinião é um ato do intelecto que se inclina para um dos termos da contradição, com o temor do outro”[10]. De fato, faz-se necessária uma demonstração, sempre que precisarmos sair do âmbito da opinião e da dúvida.

A inadequação do intelecto à realidade.
Outra coisa é a falsidade. Ela é a inadequação do intelecto à realidade. Por exemplo, quando dizemos que o cavalo de Napoleão é preto, isto é falso, supondo que este seja branco. E quando chamamos de verdadeiro o que é falso, acontece ainda outro fenômeno, a saber, o erro. O erro é, pois, a afirmação do falso como verdadeiro. Quase sempre ocorre quando tomamos como verdade o que temos apenas como opinião, e esta é falsa. Em outras palavras, o erro ocorre quando tomamos por verdadeiro o que, na verdade, se nos apresenta apenas como “provável”. Neste sentido, o erro é precedido por uma confusão do espírito, a qual consiste em não se saber distinguir a flutuação da opinião da firmeza da certeza. Destarte, a raiz do erro reside nisto: em vez da sensatez da dúvida, que, neste caso, é positiva, posto que implica a suspensão do juízo em ordem à demonstração, a fim de que – por meio da prova – se logre a evidência de que se carece, o nosso espírito é levado, por uma economia intelectual temerária, a afirmar mais do que vê com clareza. Outra razão do erro é confundir esta dúvida positiva da qual falamos, e que é a suspensão do juízo, porquanto este se encontra oscilante em face de duas teses opostas, com a dúvida negativa ou dificuldade, procedente, não da coisa, mas da nossa ignorância ou de um intelecto raptado por dogmatismos caprichosos. Quando estabelece a Teologia como ciência, Tomás se refere a esta espécie de dúvida com estas palavras:

A dúvida que pode surgir em alguns a respeito dos artigos de fé não deve ser atribuída à incerteza das coisas, mas à fraqueza do intelecto humano.[11]

Algo, porém, é certo: não podemos viver só de juízos opinativos ou na dúvida. A nossa inteligência foi criada para a verdade e não repousa enquanto não a encontra. Como atestamos isso? É muito simples. Pensemos numa consulta médica. Há a suspeita de uma moléstia grave: em nós ou em um dos nossos. O especialista diz-nos: é provável que não seja tão grave. Porém, não nos dá a certeza. Ficamos tranquilos? Pior, e se ele simplesmente duvida, isto é, suspende o juízo, e nos diz que só se pronunciará acerca da gravidade ou não da doença após o resultado dos exames que solicitará? Ficamos satisfeitos? Conseguimos descansar antes que saia o resultado de uma biópsia, por exemplo? É claro que não. E outros exemplos poderiam ser arrolados. É fato: o homem não consegue viver somente de juízos opinativos e na dúvida, máxime em assuntos graves e por período prolongado.

É claro que nem sempre teremos a certeza metafísica das demonstrações, mas quem disse que há só um tipo de certeza? Há também a certeza moral, fundada na idoneidade habitual de quem se pronuncia sobre o que lhe compete, e há, ainda, a certeza física. Por exemplo, não temos razão para duvidar que o sol vá nascer amanhã. É uma certeza física. Outrossim, não há um “porquê” para duvidarmos de um médico de nossa confiança, cuja probidade é atestada pela experiência de longos anos cuidando de nós e pelos muitos pacientes que possui. É uma certeza moral. Mas ratificamos: é certo que não podemos viver sem a verdade, sem algum tipo de certeza. Por isso, quando Tomás retoma Aristóteles para dizer que todos tendemos ao saber, não se esquece de completar dizendo que tendemos naturalmente a saber a verdade:

Além disso, assim como o verdadeiro é o bem do intelecto, o falso é o seu mal, segundo o Filósofo (VI Ética 2, 1139 a, Cmt 2, 1130), pois, naturalmente desejamos conhecer o verdadeiro, e fugimos de ser enganados pelo falso.[12]

Como todos os homens, por natureza, desejam saber a verdade, também neles é natural o desejo de fugir dos erros e de os refutar quando têm essa faculdade.[13]

Outra coisa ainda é a veracidade. Ela é a adequação da nossa palavra ao que pensamos. É, por assim dizer, a verdade da palavra. Desta sorte, pode-se ser veraz, sendo falso. Assim, quando alguém diz que o Cavalo de Napoleão, que é branco, é preto, faz uma afirmação falaciosa. Contudo, se realmente pensa isto, está sendo veraz. Tomás diz: “Quando alguém enuncia uma coisa falsa acreditando que se trata de algo verdadeiro [...]. Não se trata de uma mentira, no sentido exato do termo”[14]. Agostinho também comenta:

[...] o verbo não é verdadeiro a não ser quando gerado da própria realidade conhecida. Nesse sentido, pode ser falso nosso verbo, não porque mentimos, mas porque nos enganamos.[15]

 
Mentira é a inadequação da palavra ao que pensamos.
Então, o que é uma mentira no sentido exato do termo? A mentira é a inadequação da palavra ao que pensamos, conforme atesta o mesmo Aquinate: “[...] se chama mentira aquilo que se diz contra a mente”[16]. Agora bem, por incrível que pareça, podemos também ser verdadeiros em nossa fala, sendo, não obstante, mentirosos. Por exemplo, alguém que diz que a verdade existe e podemos conhecê-la, afirma uma verdade. Todavia, se ele não pensa assim, e não adverte quem o ouve de que está apenas expondo e não propriamente afirmando, é um mentiroso; embora tenha dito a verdade, é falso e vive na falsidade. Remata Tomás:

 [...] neste caso, mesmo que seja verdade o que se diz, este ato, considerado do ponto de vista da vontade e da moralidade, contém em si mesmo a falsidade, e só por acidente a verdade.[17]

 Se o leitor percebeu, o que queremos colocar é o seguinte: a verdade plena só existe quando, não apenas dizemos algo conforme a realidade, senão também quando o dizemos com veracidade. O que gostaríamos de mostrar é que a verdade é uma virtude moral. Com efeito, conhecer a verdade é um ato do intelecto, mas dizer a verdade é um ato moral. Em outras palavras ainda, faltar com a verdade vai resultar sempre numa espécie de deformidade, pois o erro não termina no intelecto, mas contamina a vontade que adere ao que o intelecto concebe e, por consequência, vicia fatalmente os atos humanos. De fato, se Tomás diz que “[...] o intelecto move a vontade, pois o bem conhecido é o objeto da vontade, e a move enquanto fim”[18], ele não deixa de ponderar:

 [...] para que a vontade tenda para algo, não é necessário que seja o bem da coisa, mas que seja apreendido na razão de bem. Donde o Filósofo dizer no livro II da Física: “O fim é o bem ou o que tenha aparência de bem.”[19]

 Portanto, a inadequação do intelecto à coisa, isto é, a falsidade, irá inexoravelmente redundar em atos desordenados, desintegrados. Assim, pode haver alguém que pensa que está certo, porque veraz – coerente consigo mesmo – mas encontra-se enganado, porque seu juízo não está adequado à realidade. Destarte, há pérfidos que não sabem que o são. Existem pessoas malévolas que acreditam ser boas. Há, por fim, os que até sabem o que é certo, conhecem a verdade, porém, não acreditam nela, não vivem segundo ela; ao contrário, preferem a opinião e a dúvida à certeza da verdade. Por quê? Porque conhecem a verdade apenas materialmente, não a reconhecendo como um bem maior. São pessoas perturbadas, desequilibradas, que pensam que o mundo é a imagem das suas representações. Teatralizam a vida. Já dizia Fílon de Alexandria, fazendo instigante alegoria:

Talvez seja justamente esse o sinal indicador de que Caim não deveria ter sido morto: o fato de que ele nunca foi eliminado. Em todo o livro da Lei, de fato, Moisés não informa a morte de Caim, aludindo alegoricamente ao fato de que, como a Cila do mito, a estupidez é um mal imortal, que não experimenta aquele fim completo que consiste em ser mortos, mas que sofre por toda a eternidade o fim no sentido do continuar a morrer. Oh, se acontecesse o contrário, e as coisas desprovidas de valor fossem descartadas e sofressem uma completa destruição! Ao contrário, sempre excitadas, provocam, nos que foram capturados por elas uma vez, a doença que nunca morre.[20]

A diferença entre o ignorante e o néscio.
No entanto, há um problema ainda mais grave. Não temos a obrigação de saber tudo e nem sempre temos sequer condições e oportunidade para saber muitas coisas. Ora, quando alguém não sabe algo que não tem a obrigação de saber ou que não teve como saber, trata-se de um néscio. Já alguém que não sabe o que tem a obrigação de saber e teve condições razoáveis para saber, é um ignorante. Assim, um geômetra não é ignorante se não souber explanar sobre teses teológicas. No caso, ele seria um néscio. Com outras palavras, um geômetra não é nem um bom nem um mau teólogo, ele simplesmente não é um teólogo, o que é completamente diferente de ser um mau teólogo. Já se ele não souber demonstrar o teorema de Pitágoras, é um ignorante, porque tinha a obrigação de saber, e supõe-se que, apresentando-se como um geômetra, teve como saber. Em uma palavra, se não souber geometria, pode ser considerado um mau geômetra. Nas palavras de Tomás:

A ignorância difere da nesciência em que significa a simples negação da ciência. Por isso, pode-se dizer daquele a quem falta a ciência de alguma coisa, que não a conhece. [...] A ignorância implica uma privação de ciência a saber, quando a alguém falta a ciência daquelas coisas que naturalmente deveria saber.[21]

Poderia alguém nos arguir: então, quando há culpa? Há certas coisas, como os “[...] preceitos universais da lei [...]”[22], que todos são obrigados a saber; e, quanto a uma pessoa em particular, “[...] o que diz respeito ao seu estado e sua função [...]”[23], também está obrigada a saber. Por isso, se se engana e engana os outros quanto a estas coisas, é malévola por culpa própria. E quanto às demais coisas – surge a questão – que não são de per si evidentes? Respondemos: para isto existe a educação, a saber, para nos instruir – intelectual e moralmente – acerca delas. É o próprio Aquinate quem diz que a razão de haver muitos que ignoram os princípios segundos da lei é a falta ou a má educação:

–– Quanto, porém, aos seus outros princípios segundos, pode a lei natural ser destruída dos corações dos homens, ou por causa das más persuasões, do mesmo modo como no especulativo acontecem os erros a respeito das conclusões necessárias; ou também em razão dos costumes depravados e hábitos corruptos [...].[24]

Na verdade, educação é coisa séria! Mas entendamos bem. Uma coisa é a capacidade e o poder; outra, a competência e a autoridade. Capacidade e domínio sobre um assunto adquirimos estudando-o; competência, hoje, é-nos conferida por meio de instituições. Mas o que temos diante dos nossos olhos? Pessoas incapazes, ou que, em nome de ideologias, renunciaram à grande capacidade que possuem, ao mesmo tempo em que adquiriram, por meio de um certificado dado por alguma instituição, a “competência” e a “autoridade” para falarem sobre determinados assuntos como se fossem portadoras da palavra final sobre eles. Somente que, ao se porem a falar, não dizem a verdade acerca daquele assunto sobre o qual teriam a obrigação de conhecer, mas dizem o que elas pensam, embora o que elas pensem não seja a verdade e nem tenha a ver com o assunto sobre o qual recai a sua responsabilidade. Trocando em miúdos, em nosso mundo, a competência está dissociada da capacidade de dizer a verdade; a veracidade está dissociada da verdade; temos, em nosso tempo, no pico das virtudes, não a verdade que alguém tem a obrigação de saber e dizer, sob pena de ser um ignorante e incompetente, mas a “coerência”, a “sinceridade”, a “franqueza” de dizer o que pensa, ainda que o que pense seja uma falsidade. Ora, estas pessoas não fazem mal somente a si mesmas, mas deformam a sociedade. No entanto, é simplesmente um fato que é a estes inscientes que confiamos os nossos filhos e a nossa própria sede de sabença: competentes, mas incapazes.

Qual a solução? Está no imperativo: γνθι σεαυτόν, transliterado: gnõthi seaytón, traduzido: “Conhece-te a ti mesmo”[25]. E o conhecimento de si mesmo começa pela constatação da própria ignorância, isto é, da precariedade dos conhecimentos que cada um possui. A bem da verdade, é um grande passo rumo à sabedoria, porém, muito difícil de ser dado, reconhecer que não se sabe ou ao menos que não se sabe como se deveria saber. Entretanto, ele é essencial. Daí a máxima socrática: Ἓν οἶδα ὅτι οὐδὲν οἶδα", transliterado: hèn oĩda hóti oydèn oĩda, traduzido: Sei que nada sei[26].

Mas há outro momento não menos importante à integração pessoal, vale lembrar, saber o instante em que se pode dizer a si mesmo: “eu sei que sei”. De fato, saber que sabe é também parte integrante da sabedoria, visto que só assim o conhecimento que adquirimos torna-se totalmente nosso e passa a estar integralmente à nossa disposição. Neste sentido, já dizia Agostinho: “[...] tudo o que entendo, sei que entendo, e sei que quero o que quero, e recordo tudo o que sei”[27]. E ainda: “Segue-se também que, no que conheço que me conheço, não me engano. Como conheço que existo, assim conheço que conheço”[28]. Com efeito, quando percorridos estes dois momentos, estamos muito próximos da posse de nós mesmos.

Mas o que isso implica? Implica que podemos passar a dar o melhor de nós mesmos para os outros, ou seja, encontramo-nos então em condições de alcançar aquela excelência no exercício mais excelente que possuímos, a saber, a posse de nós mesmos pelo intelecto e pela vontade. Nisto consiste justamente a areté (aretḗ). Aretḗ, que vem de ἄριστον (áriston), que quer dizer excelência, posto que superlativo de ἀγαθόν (agathón), que é bem. De fato, ninguém pode ser feliz (εὐδαίμων), se não consegue dar o melhor de si, se não consegue ser bom (εὖ, eỹ), mas ninguém pode dar o melhor de si e nem ser bom se não se conhece e se unifica. Daí que vício, em grego κακία, significar, antes de tudo, ação disforme (κακός é mal, ruim, daí cacofonia). Donde do mesmo termo proceder κκιστος, que é malvado, isto é, aquele que vive de modo disforme. Aplicado aos dias de hoje, um homem integrado é um homem que descobriu quem é e vive conforme é. É um homem cuja competência vem aliada à capacidade e cuja veracidade coincide com a verdade. É alguém que não exorbita da sua competência, pois a conhece. Se ensina gramática, não é leviano para querer ensinar química. Para Aristóteles, só este homem integrado é capaz do ἔργον (érgon), isto é, de uma obra própria, porque provinda de dentro, porque ordenada, porque consoante o fim do homem.

E onde Deus entra nisso? Embora tenhamos aberto o texto com a questão de Deus, ela permanece uma incógnita em todo espírito que não procure, antes, integrar-se. Não fugimos da questão, nem desviamos o assunto, senão que o conduzimos para o que pensamos ser o seu centro: por incrível que pareça – na questão de Deus – Deus não é o “x do problema”, mas sim a moral, melhor, a existência de quem procura conhecê-lO.[29]

Amor ao saber.
Platão é o pai da filosofia. Este termo, Φιλοσοφία, ao que tudo indica, de origem pitagórica, é em Platão que ganhou o sentido que hoje lhe damos: amor à sapiência. Foi Platão também um dos maiores escritores de todos os tempos. Mas o mais impressionante está no fato de que, foi num período de pestes, mortes, carestias e guerras de toda sorte; foi em meio a prisões e segregações, bem como sem nenhum conforto e com pouquíssimos recursos, que o filósofo ateniense escreveu, quantitativa e qualitativamente, melhor do que todos os homens da história que tiveram as benesses de que ele que carecia. Entretanto, ele não “idolatrava” a escrita e isto por uma razão muito simples: na sua concepção, a escrita não tem alma. Para Platão, as coisas mais importantes devem ser ditas oralmente, não escrevendo. Por quê? Primeiro, porque a fala precede naturalmente à escrita. Destarte, a palavra escrita é apenas cópia e imitação da oral e, como tal, é imperfeita.

Ademais, a sapiência (σοφία) não é só algo abstrato; antes, é um estilo de vida, um jeito de viver. E a vida não se transcreve, não se grafa, ao menos propriamente (Perdoem-nos os biógrafos). O filósofo não é, pois, essencialmente, um bom escritor, um erudito ou um culto (o que não significa, está claro, que ele tenha que ser um mau escritor, rude e inculto!), mas um homem que pensa e sabe defender o que pensa. O dialético é aquele que sabe defender o que pensa porque sabe o que conhece e sabe o que não conhece; é senhor de si, consegue nominar as coisas, sabe o que sente e vive o que pensa e pensa o que vive e está disposto a morrer pela verdade. O filósofo é, antes de tudo, um homem da palavra (λγος), que vive da palavra que concebe. No Fedro, Platão delineia isto clareza:

Sócrates –– Já nos divertimos bastante com o que se refere aos discursos. Mas tu deves procurar Lísias e dizer-lhe que nós dois, tendo descido à fonte e ao santuário das Ninfas, ouvimos discursos que nos ordenavam dizer a Lísias e a quem quer que componha discursos, a Homero e a qualquer outro que tenha composto poesia com música ou sem música, a Sólon e a quem quer que haja composto discursos políticos denominando-os leis: “Se compôs essas obras conhecendo a verdade e está em condição de socorrê-las (βοηθεν) quando defende as coisas que escreveu e, ao falar, possa demonstrar (Φαλα) a debilidade do texto escrito, então, um homem assim deve ser chamado não com o nome que têm aqueles que citamos, mas com um nome derivado do objeto ao qual se aplicou seriamente”.

Fedro –– E que nome é esse que lhe dás?

Sócrates –– Chamá-lo sábio, Fedro, parece-me exagero, pois tal nome convém somente a um deus; mas chamá-lo filósofo, ou seja, amante da sabedoria, ou algum outro nome desse tipo, seria mais próprio e mais conveniente para ele.

Fedro –– E de nenhuma maneira seria fora de propósito.

Sócrates –– Ao contrário, aquele que não possui nada de mais valor (Τιμιώτεπα) do que aquelas coisas que compôs ou escreveu, passando muito tempo em girá-las de um lado e de outro, colocando ou separando uma parte da outra, não o chamarás com razão poeta, fazedor de discursos ou redator de leis?

Fedro –– Sem dúvida.[30]


Como conhecer o filósofo e suas filosofias.
Destarte, podemos dizer que não é o fato de alguém ter lido todas as obras de Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, que faz dele um platônico, um aristotélico, um agostiniano, um tomasiano. Isso é erudição. De mais a mais, escrever bem sobre os filósofos, no máximo, tornará alguém um bom escritor ou historiador. Com efeito, o que nos torna platônicos, aristotélicos, agostinianos ou tomasianos é habituarmo-nos a pensar e viver conforme eles. Já dizia Agostinho: “[...] a filosofia é nosso verdadeiro e inabalável lugar de habitação”[31]. Desta sorte, ninguém que simplesmente leia a biblioteca inteira de um filósofo tornar-se-á filósofo por isso, ou mesmo conhecerá o que o filósofo conheceu, ao menos não conhecerá como ele conheceu. De fato, há um coeficiente de singularidade em todo processo de conhecimento; o como conhecemos é só nosso e não se repete. Assim, ainda que digamos as mesmas verdades que um filósofo disse, jamais as diremos com o mesmo empenho vital que ele disse, porque também não as conquistamos com o mesmo esforço pessoal que ele as conquistou.

O que queremos dizer é o seguinte: embora a verdade seja objetiva e inegociável, o modo como a alcançamos tem um “quê” de individual. E essa particularidade se manifesta na oralidade, já que quando falamos estamos todo ali, somos todo expressão. Não somente a nossa boca, mas todo o nosso corpo se exprime. Na oralidade, há um empenho nervoso, uma sinergia “psíquico-somática” que nos torna imediata e inteiramente expressivos. Quando falamos, não é só a nossa palavra que fala, mas somos nós que falamos. Só na fala a verdade torna-se “ossos dos nossos ossos, carne da nossa carne” (Carlo Sini). Somente na oralidade a verdade se concretiza, se torna não somente audível, mas também palpável, visível. Na fala, a verdade começa a ser vivida; na oralidade, a verdade “se faz carne”. Tomás de Aquino já aludia a este fato, quando dizia com toda clareza que a verdade não se diz apenas com a palavra audível, mas com toda sorte de gesticulações, ou seja, com um engajamento vital e moral de todo o indivíduo. Para o Aquinate, só quem está comprometido por inteiro com aquilo que faz é capaz de, com a sua fala, não profanar o silêncio, e com os seus gestos, não o prevaricar. Nós devemos ser, por assim dizer, “cartas vivas” a falar, inclusive com o nosso corpo, a verdade. Só diz plenamente a verdade quem é verdadeiro, quem vive na e da verdade:

Deve-se dizer que aquele que diz a verdade emprega certos sinais que são conformes à realidade das coisas, sinais que podem ser palavras, gestos ou outras coisas exteriores. Ora, são somente as virtudes morais que regulam estas coisas, e que regulam também o uso de nossos membros externos, na medida em que dependem do império da vontade. De onde se conclui que a verdade não é nem virtude teologal, nem virtude intelectual, mas uma virtude moral.[32]

Ora, constitui um tipo de ordem especial o fato de nossas palavras e atos externos estarem em conformidade com a realidade como o sinal em relação à coisa significada. E a virtude da verdade tem esta função de aperfeiçoar o homem no que diz respeito a isto.[33]

Obviamente que não se trata apenas de falar com a boca. O homem, como se deduz das palavras acima, fala com o seu corpo, com os seus atos, enfim, com toda sorte de empenhos nervosos e musculares. Ora, o filósofo não é senão aquele que diz – com a sua própria vida – a verdade; ele é o lugar, por assim dizer, onde a verdade se materializa “em carne e osso” (Husserl). Qualquer coisa diferente disso – para Tomás – não leva a nada. Diz ele:

Logo, quando observamos que as palavras de uma pessoa não se coadunam com suas ações, ela perde credibilidade no que diz, e suas afirmações anulam-se. [...] Portanto, as verdadeiras palavras não devem somente ser úteis ao conhecimento, mas têm de fundar a vida [boa e honesta], porque só podemos acreditar nas palavras que se harmonizam com os atos. As palavras verdadeiras, portanto, provocam as pessoas que as compreendem, fazendo-as adquirir a verdade delas e incitando-as a viver [segundo seus exemplos].[34]

O próprio Tomás, num dos raros autotestemunhos – fazendo suas as palavras de Santo Hilário – confessa que não quer senão confessar com todo o seu ser – corpo e alma – a Deus. Ele desejava ser uma vida que fala:

Por isso, sirvo-me aqui das palavras de Hilário: ‘Estou consciente de que o principal ofício da minha vida (praecipuum vitae meae officium) é referente a Deus, de modo que toda palavra minha e todos os meus sentidos dele falem (omnis sermo meus et sensos loquatur)’ (I Sobre a Trindade 37. PL 10, 48 D).[35]

Platão também acreditava nisso. Por isso, para ele, o filósofo é aquele que, antes de tudo, fala a verdade e a defende com a sua própria vida. Em outras palavras, o filósofo não é somente o mestre do bem pensar, mas um mestre de vida. Só nos tornamos filósofos quando, integrados pelo conhecimento de nós mesmos, “incorporamos” a verdade que pensamos, falando e fazendo da nossa vida um sinal adequado à realidade. Neste sentido, o escrito é só para nos ajudar a recordar, mas mesmo este recordar (νάμνησις, anámnēsis) não é um recordar simplesmente com a mente; antes, é um reviver em nós o processo “psíquico-somático” que nos conduziu àquele saber:

Sócrates –– Por conseguinte, quem julgasse poder transmitir uma arte com a escritura e quem a recebesse convencido de que poderá extrair daqueles sinais escritos alguma coisa de claro e sólido, deveria ser grandemente ingênuo e ignorar, na verdade, o vaticínio de Amon, se considera que os discursos consignados por escrito são alguma coisa mais do que um meio para trazer à memória (πομνσαι) de quem já sabe as coisas das quais trata o escrito.

Fedro –– Certamente.[36]

Agostinho também não era alheio a esta forma de proceder. Numa de suas obras – De catechizandis rudibus – escrita por volta do ano 400, a pedido de um catequista de Cartago chamado Deogratias, que se encontrava enfastiado por achar que não conseguia narrar os mistérios da fé de forma compreensível, Agostinho responde que, a única maneira de transmitirmos a verdade de modo que todos possam entendê-la, é dizendo-a “na carne”. Para aproveitarmos um exemplo muito simples do próprio Agostinho, trata-se do seguinte: se dissermos, “estou com raiva”, em português, um americano que não conhece a nossa língua, certamente não entenderá. Mas se dissermos, “estou com raiva”, não só com palavras, mas com gestos, isto é, com um empenho nervoso facial e corporal, não somente o nosso amigo americano, mas provavelmente todos os que nos virem – de uma maneira ou de outra – entenderão que estamos com raiva. Ora, isso vale para qualquer verdade. Assim, para Agostinho, a verdade só se torna universal – e maximamente acessível – quando se concretiza naquele que a diz, isto é, quando aquele que a diz a vive:

Assim, “raiva”, se diz de um modo na língua latina, de outro na grega, de diversas maneiras nas diversas línguas: mas a fisionomia raivosa não é nem latina nem grega. É por isso que, quando alguém diz “iratus sum” (“estou com raiva”), nem todos o entendem, mas somente os latinos; mas se o sentimento de efervescência da raiva se manifestar no rosto e moldar a fisionomia da pessoa todos os que a veem percebem que ela está com raiva. A palavra não consegue fazer chegar e como que suscitar na mente dos ouvintes aquelas marcas de pensamento que a inteligência imprimiu na memória, como o consegue o rosto aberto e a fisionomia: aquelas são marcas interiores, estão na mente; o rosto, ao invés, está fora, no corpo.[37]

Podemos dar vida aos nossos textos. Existem recursos para isso. Podemos estar em nosso texto, entrar nele, habitar nele. Desta sorte, podemos levar a quem nos leia a não somente nos ler, mas, sobretudo, a nos ouvir; escutar o que estamos dizendo. Como alcançamos isso? Através de certa habilidade erótica (ἐρωτιχή [erōtikhḗ]). De fato, um (érōs, ἔρως) deve perpassar o nosso texto e, a serviço da verdade, torná-lo aberto, atraente e vivo para quem o lê (Umberto Galimberti). Já Tomás reconhece que provocar o amor dos ouvintes pelo tema é o melhor modo de excitá-los à pesquisa e tocá-los. Em suma, ensino e aprendizagem devem ser prazerosos, porque o prazer coloca o que foi assimilado no mundo da vida:

Cada pessoa age maximamente e investe seus esforços naquilo que mais ama: o músico vigorosamente atenta-se para a audição das melodias; o amante da sabedoria esforça-se ao máximo para compreender os teoremas por suas próprias considerações. Então, como o prazer aperfeiçoa a operação, como acima foi dito, por consequência, aperfeiçoa o próprio ato de viver e, por isso, todos o desejam e o escolhem.[38]

Também Agostinho já reconhecia que amar o que se faz e fazer o que se ama e, portanto, fazer tudo com alegria, torna o nosso trabalho mais prazeroso, atrativo, interessante e, por conseguinte, entendível para quem o frequenta:

Uma coisa é verdade: os outros nos ouvem com muito mais prazer quando nós mesmos estamos contentes com o que fazemos. Pois a nossa alegria afeta a própria qualidade da nossa fala, que sai mais fácil e aceitável. [...]. Quando é melhor uma narrativa mais breve e quando uma mais longa? O mais importante é que a pessoa catequize com alegria, seja qual for a maneira que usar (de fato, quanto mais alegre ela for, mais será agradável). O máximo empenho deve ser colocado nisso.[39]

E o contrário também é verdadeiro. Quando fazemos algo de forma tensa, angustiante; quando vamos realizar um trabalho inseguros e encontramo-nos desgostosos por acharmos que não nos fazemos entender, fatalmente não agradaremos aos ouvintes e seremos menos comunicativos:

De nossa parte, desejando ardentemente o bem do ouvinte, queremos dizer-lhe tudo como o compreendemos. (...) e porque não conseguimos, nos angustiamos, nos sentimos frustrados no trabalho, nos acabrunhamos de aborrecimento e, por causa desse tédio, a nossa palavra se torna ainda mais frouxa e desanimada do que antes.[40]

Urge que saibamos dizer uma palavra encarnada. Quem aspira à filosofia deve encarnar a verdade em sua vida.






[1] AGOSTINHO. A instrução dos catecúmenos. 2ª ed. Trad. Maria da Glória Novak. Rio de Janeiro: Vozes, 2005. XI, 16. p. 64.
[2]  Queremos dizer, com meridiana clareza, que as provas tradicionais da existência de Deus de Tomás de Aquino – para nós – são válidas e verdadeiras. 
[3] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: A Ceia do Senhor. Trad. José Augusto Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1952. v. IV. LXXXIX, 5.
[4] Idem. Ibidem. XC, 1.
[5] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. 2ª ed. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1954. v. II. XXIX, 4.
[6] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de João: O Verbo de Deus. 2ª ed. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1954. v. I. XIII, 5. 
[7] Idem. Ibidem.
[8] AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira. Rev. Paulo Bazaglia e Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2002. I, 6, 6
[9] AGOSTINHO. Sermo 223 A. 5. Disponível em < http://www.augustinus.it/latino/discorsi/discorso_284_testo.htm>. Acesso em: 14/12/2013. [A tradução é nossa]. 
[10] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Trad. Aimom - Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001. I, 79, 9, ad 4. 
[11] Idem. Ibidem. I, 1, 5, ad 1.
[12] TOMÁS DE AQUINO. Suma Contra os Gentios. Trad. D. Odilão Moura e Ludgero Jaspers. Rev Luis A. De Boni. Porto Alegre: EDPUCRS, 1996. 2 v. I, LXI, 7 [513].
[13] TOMÁS DE AQUINO. A Unidade do Intelecto Contra os Averroístas. Trad. Mário Santiago de Carvalho. Lisboa: Edições 70, 1999. I, 1. 
[14] Idem. Suma Teológica. II-II, 110, 1, C.
[15] AGOSTINHO. A Trindade. 2ª ed. Trad. Agustino Belmonte. Rev. Nair de Assis Oliveira e Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2005.  XV, 15, 24.
[16] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, 110, 1, C.
[17] Idem. Ibidem
[18] Idem. Ibidem. I, 82, 4, C.
[19] Idem. Ibidem. I-II, 8, 1, C.
[20] FÍLON DE ALEXANDRIA. Il malvagio tende a sopraffare il buono. Cap. XLVIII. Trad. C. Mazzarelli. Milão: Rusconi, 1994. p. 321. In: REALE, Giovanni. O Saber dos Antigos: terapia para os tempos atuais. 3ª ed. Trad. Silvana Cobucci Leite. Rev. Joseli Nunes Brito et al. São Paulo: Edições Loyola, 2011. p. 116. 
[21] Idem. Ibidem. I-II, 76, 2, C.
[22] Idem. Ibidem.
[23] Idem. Ibidem.
[24] Idem. Ibidem. I-II, 94, 6, C. 
[25] PLATÃO. Alcebíades maior, 130 e.
[26] PLATÃO. Apologia a Sócrates. 23 d.
[27] AGOSTINHO. A Trindade. X, 11, 18.
[28] AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 4ª ed. Trad. Oscar Paes Lemes. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2001. Parte II. XI, XXVI. 
[29] Não que quem não acredite em Deus não seja ético. Isso seria baratear a questão, apoucá-la. O que afirmamos é que lidar com a possibilidade de Deus não implica somente problemas gnosiológicos, mas implica um estilo de vida. 
[30] PLATÃO. Fedro. 278 b-c In: REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga: II Platão e Aristóteles. Trad. Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1994. pp. 16 e 1. Vide, ainda, os autotestemunhos da celebérrima Carta VII, 340 b- 345 c. 
[31] AGOSTINHO. A Ordem. Trad. Agustinho Belmonte. Rev. Joaquim Pereira Figueiredo.  São Paulo: Paulus, 2008.  I, III, 9. 
[32] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, 109, 1, ad 3). (O itálico é nosso).
[33] Idem. Ibidem. II-II, 109, 2, C. (O itálico é nosso).
[34] TOMÁS DE AQUINO. Sobre os Prazeres: Comentário ao Décimo Livro da Ética de Aristóteles. Trad. Tiago Tondinelli. São Paulo: Ecclesiae, 2013. X, I. pp. 18-19.
[35] Idem. Suma Contra os Gentios. v. I. I, II, 2 [9]. 
[36] PLATÃO. Fedro. 275 c-d. In: REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga: II Platão e Aristóteles. Trad. Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1994. p. 16. 
[37] AGOSTINHO. Primeira catequese aos não cristãos. Trad. Paulo Antonio Mascarenhas Roxo. Rev. Tiago José Risi Leme e Iranildo Bezerra Lopes. São Paulo: Paulus, 2013. II, 3. p. 71.
[38] TOMÁS DE AQUINO. Sobre os Prazeres: Comentário ao Décimo Livro da Ética de Aristóteles. X, VI. p. 55. 
[39] AGOSTINHO. Primeira Catequese Aos Não Cristãos. II, 4. p. 73.
[40] Idem. Ibidem. II, 3. p. 72.