segunda-feira, 17 de março de 2014

21/03/1981 - XV Centenário do Nascimento de São Bento e Santa Escolástica - João Paulo II

XV CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE SÃO BENTO E SANTA ESCOLÁSTICA
HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II
Basílica de São Paulo fora dos Muros 
Sábado, 21 de Março de 1981

Veneráveis Irmãos e Filhos caríssimos

1. Et benedicam tibi..., erisque benedictus (Gén 12, 3). Como coroamento dos vários encontros e das palavras que, em datas diversas, tive ocasião de pronunciar durante o ano centenário dos Santos Bento e Escolástica em Núrsia, em Montecassino e em Subiaco, apraz-me tomar — como há pouco fez a Sagrada Liturgia — esta bela expressão bíblica que contém uma das arcanas promessas feitas por Deus ao patriarca Abraão, e aplicá-la ao patriarca do monaquismo ocidental, bendito no nome e nas obras. Considero, de facto, muito oportuno e significativo o rito desta tarde, junto do Túmulo do Apóstolo das Gentes, a fim de honrar mais uma vez Bento, e concluir dignamente as frutuosas celebrações comemorativas, como fizera, nesta mesma Basílica, o meu Predecessor Pio XII, de venerada memória, em Setembro de 1947, no XIV Centenário da sua piíssima morte. Após o dramático conflito que tinha devastado e ensanguentado tantas nações, ele quis invocar, precisamente aqui, a especial protecção de Bento, Europae altor et pater, para a recuperação espiritual e material não só do Continente europeu, mas também do mundo inteiro (cf. Pio XII, Discursos e Radiomensagens, vol. IX, pp. 237-241).

2. A todos vós aqui presentes, Bispos, Sacerdotes, Religiosos e Leigos, desejo apresentar a minha cordial saudação: dirijo-me, em primeiro lugar, à Comunidade Beneditina local com o seu Abade Ordinário e com o Abade Presidente da Congregação Cassinense. Saúdo a seguir os superiores e os membros das Famílias monásticas masculinas e femininas de Roma, aqui reunidos com tantos outros representantes de Ordens e Congregações religiosas, para celebrarem no espírito da verdadeira comunhão fraterna o grande mestre da vida consagrada. E saúdo, por fim, os fiéis da Paróquia de São Paulo, aos quais os próprios Padres Beneditinos do Mosteiro contíguo dedicam por uma tradição ultra-secular o seu prezado serviço, dando deste modo testemunho do ideal monástico e também da sua capacidade de irradiação apostólica.

Com efeito, o instituto monástico é chamado, nesta Basílica, a dar prova da sua consistência: é chamado a oferecer o exemplo do mais esmerado estilo litúrgico, do mais assíduo empenho no indispensável ministério sacramental da reconciliação, do acolhimento hospitaleiro aos peregrinos e visitantes, provenientes de todas as partes do mundo; mas é chamado, ao mesmo tempo, a preparar um programa apropriado de encontros religiosos, de iniciativas em defesa da convivência familiar, de colóquios ecuménicos. E tudo isto constitui um contributo precioso não só para a pastoral diocesana, mas também para a animação de toda a Igreja. Aqui, mais do que noutros Mosteiros colocados no coração da vida eclesial e civil, a espiritualidade da contemplação é posta ao serviço do empenho apostólico, segundo o ensinamento de São Gregório Magno, o qual, a pouca distância da morte do Patriarca Cassinense, empenhou os monges na árdua empresa da evangelização da Inglaterra, dando impulso àquela admirável série de viagens missionárias que abriram a Europa ocidental ao cristianismo e à civilização, assim como, na oriental, actuaram com igual fervor pastoral os grandes apóstolos do mundo eslavo, Cirilo e Metódio.

3. Como fruto do ano centenário, no decurso do qual a figura e a obra de São Bento difundiram na Igreja e na sociedade uma mensagem surpreendente de luz, podemos já advertir mais claramente a necessidade de o monaquismo reviver as suas genuínas e múltiplas tradições, quer de vida estritamente claustral, quer de presença activa nos sectores da pastoral, do artesanato ou da agricultura, da pesquisa científica, etc. Tudo isto terá aplicação mais fácil e eficácia mais segura, só se forem afirmados o primado da busca de Deus na liturgia e na lectio divina, o respeito das exigências conaturais à vida comunitária e o apego fiel ao trabalho nas suas diversas formas.

Voltando ao que foi afirmado no término do Simpósio que, no passado mês de Setembro, viu reunidos os Abades e as Abadessas e os Superiores beneditinos, cistercienses e trapistas, formulo de bom grado votos por que "as comunidades monásticas proclamem que todas as gerações, mentalidades, raças e classes sociais podem encontrar-se em Cristo; sejam elas centros de oração, onde a Palavra de Deus é compreendida e recebida; estejam, com a simplicidade da sua vida, junto dos oprimidos e dos pequenos deste mundo; procurem a paz e a justiça para todos; sensibilizem os nossos contemporâneos aos males do consumismo, do individualismo e da violência" (cf.Mensagem do Simpósio monástico).

Como no fim da idade antiga São Bento e os seus monges souberam fazer-se construtores e guardiães da civilização, também nesta nossa idade, assinalada por uma rápida evolução cultural, é urgente tomar consciência dos desafios que nos vêm do mundo moderno e rebater, ao mesmo tempo, a sincera adesão aos valores perenes. O primeiro e inexaurível valor é a Palavra de Deus, que deve ser escutada todos os dias para a contínua conversão da vida, em referência exacta aos problemas presentes e aos que se delineiam no horizonte: o Terceiro Mundo, a crise da família, o dilatar-se da droga e da violência, a ameaça dos armamentos e mesmo as dificuldades de ordem económica.

Se, como em São Bento, for verdadeiramente profunda a espiritualidade no cristão, no religioso, no sacerdote; se cada um for — como deve — "homem de Deus", então poderá ser realmente "servo do homem". A escuta atenta a Deus que fala, abrirá a sua alma ao discernimento dos sinais dos tempos, como aconteceu neste mesmo Mosteiro a 25 de Janeiro de 1959, quando o Papa João XXIII anunciou, além do Sínodo da diocese de Roma, o grande Concílio Ecuménico, que foi o Vaticano II, com todos os copiosos frutos que já deu e dará ainda ao inteiro Povo de Deus.

A credibilidade da mensagem cristã depende da integração entre a catequese, a liturgia e a justiça aperfeiçoada na caridade. A proclamação da palavra nas celebrações sagradas, a reflexão iniciada nas nossas catequeses, devem ser obra de testemunhas de justiça e de caridade, de Comunidades decididas à contínua conversão na caridade e na misericórdia. A Palavra deve conduzir o ouvinte à consciência pessoal dos problemas e dos compromissos, deve estimular a comunidade a escolhas de serviço, de preferência para com os pobres — como diz o Evangelho (cf. Mt 11, 5; Lc 4, 18).

4. A este ponto parece-me que — por uma singular e, direi, providencial coincidência — o fim do Centenário de São Bento pode introduzir, com particular atenção à pobreza, o VIII Centenário do nascimento de São Francisco, que se iniciará no próximo mês de Outubro. De facto, trata-se de uma das exigências de maior realce, que emergiram dos encontros Monásticos do já decorrido Centenário Beneditino: de resto, não era possível fechar os olhos diante da vaga de materialismo, de hedonismo, de ateísmo teórico e prático que alastrou dos Países ocidentais a todo o resto do mundo. Os monges da grande árvore beneditina, os filhos das várias famílias franciscanas, em geral todos os Religiosos têm a responsabilidade de introduzir de novo na sociedade, com unívoco testemunho, por meio da conversão do coração e do estilo de vida, os valores da pobreza real, da simplicidade de vida, do amor fraterno e da generosa compartilha. Também aqui, fazendo próprias as palavras contidas na Mensagem dos Beneditinos e das Beneditinas da Ásia, desejo que o exemplo dos Santos Bento e Francisco nos leve a "tomar consciência da nossa chamada a sermos pobres com Cristo pobre, e nos solicite a segui-1'O alegremente através de uma maior solidariedade com os mais pobres dos nossos países e de todo o mundo. Deste modo cremos poder chegar, juntamente com toda a humanidade, a compreender mais profundamente o amor de Deus pelos homens e a empenhar-nos concretamente em favor dós nossos semelhantes". Aliás, a este mesmo empenho em favor do homem e da sociedade humana também deram relevo os Bispos da Europa na mensagem "Para uma Europa dos homens e dos povos", difundida de Subiaco em Setembro passado.

5. Mas é evidente, Irmãos e Filhos caríssimos, que este empenho global e os particulares deveres e ministérios em que ele se articula reenviam todos e sempre à sua fonte espiritual. Quem não sabe que a acção supõe a contemplação? E esta, especialmente nas Ordens monásticas e mendicantes, não exige, porventura, não pressupõe uma viva celebração eucarística, uma fiel liturgia coral e uma empenhada forma comunitária, para evitar o predomínio do "fazer" sobre e "ser", ou o desenvolvimento de um activismo desequilibrado em relação ao primado da vida interior? Sim, porque em todos os ministérios apostólicos, por quem quer e em qualquer forma que sejam desempenhados, o serviço precisa da catequese, e o empenho da oração, a fim de a caridade não se reduzir a simples filantropia, mas o amor do próximo ser orientado, animado e enriquecido pelo amor de Deus.

Por isso, nós queremos também agora rezar, devemos rezar. Se o centenário beneditino, que já se concluiu, nos chamou a atenção — digo a nós Pastores da Igreja de Deus e a vós todos Religiosos e Religiosas, e também a vós Leigos que sentis mais forte a vocação ao apostolado — para esta dimensão primária como base e pressuposto de qualquer actividade ministerial, nós podemos imediatamente e com muita oportunidade servir-nos da suprema palavra do Evangelhoque acabámos de ouvir. É o próprio Jesus, de facto, que está a orar no Cenáculo e nos oferece um insuperável modelo de estilo e de conteúdo em ordem às nossas orações, sejam elas pessoais ou comunitárias, litúrgicas ou particulares. Tendo já chegado ao momento culminante da sua missão,pridie quam pateretur, ele ensina-nos neste trecho conclusivo da assim chamada "oração sacerdotal" que coisa devemos Pedir, por quem devemos pedir e porque devemos pedir. Em colóquio directo com o Pai, em íntimo contacto com Ele (tu in me et ego te), Jesus ora não só pelos seus apóstolos que vê reunidos à sua volta, mas também por aqueles que, graças à sua pregação, acreditarão n'Ele: isto é, ora pelos fiéis de todas as idades e gerações sucessivas, e "para que sejam uma só coisa".

Quantas vezes ressoa neste texto sublime a invocação ou, melhor, o apelo e a aspiração à unidade? É a unidade dos "seus"; é a unidade como nota distintiva da "sua" Igreja; é a unidade que, com simultânea eficácia, une intimamente aqueles que já têm fé e ao mesmo tempo solicita o mundo, ou seja aqueles que ainda não crêem, a aceitar a fé: ut omnes unum sint... ut credat mundus (v. 21)....et cognoscat mundus (v. 23). O Senhor diz-nos tudo acerca da unidade: o mundo e a medida, a natureza e o efeito, a causa exemplar que é a unidade existente entre ele próprio e o Pai, causa final que é a fé a suscitar naqueles que ainda não a têm.

Ora, como negar que tais palavras assumem um grande relevo e uma força particular neste lugar sagrado e numa circunstância como esta? Além de um modelo de oração, elas constituem um programa de trabalho, elas têm o valor e o mérito de harmonizar contemplação e acção. E impressiona-nos ainda mais, primeiro porque este é o lugar em que repousa o Apóstolo Paulo, que foi infatigável mensageiro, entre as gentes, da unidade da Igreja de Cristo, na visão superior desta como corpo místico e como esposa mística (cf. 1 Cor 12, 12-27; Gal 3, 28; Ef 4, 1-5); e depois, porque a circunstância que aqui nos reuniu é o centenário de Bento de Núrsia, o santo do ora et labora, o qual rezou e trabalhou pela unidade com o Evangelho e com a cruz, contribuindo eficazmente para a unidade do mundo europeu, que constituía grande parte do mundo então conhecido.

Eis por que razão esta palavra oração de Cristo, nosso Mestre e Senhor, bem depressa tomada e difundida por Paulo, mais tarde ouvida e cumprida por Bento, deve ser gravada no nosso espírito, como indeclinável termo da nossa própria oração e permanente parâmetro da nossa operosidade apostólica. Ut omnes unum sint! Esta palavra, que encerra e exprime o sacramentam unitatis (cf. São Copriano, De Ecclesiae catholicae unitate, cap. 7; PL tom. IV, col. 504), é como que uma palavra de ordem e, pela circunstância em que foi antes pronunciada, tem o valor de um legado testamentário, e por conseguinte deve iluminar e guiar cada uma das iniciativas pastorais e ecuménicas, coordenando e orientando tudo para a dimensão suprema da caridade: "a fim de que o amor, com o qual me amaste, esteja neles" (v. 26). Isto — não o esqueçamos nunca — é o ponto de chegada, isto é, a meta final, porque a unidade e a caridade na vida eclesial vão com o mesmo passo. A unidade é caridade, e a caridade unidade.

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