domingo, 9 de fevereiro de 2014

A busca do homem pela verdade: conhecimento de si e de Deus.


Por Ian Farias

O rosto de Deus está cunhado na humanidade. Assim, o homem, feito à imagem e semelhança do seu Criador, não deve aniquilar-se com ideais que se contraponham à verdade instaurada no mundo pelo próprio Cristo. Ele Se-nos manifesta como promessa para a edificação da novidade do Reino de Deus, restitui a dignidade do homem e humaniza o que outrora se perdera.

Vivemos numa cultura que tende a essencializar o superficial e a superficializar o essencial. Esta realidade, que tem nos levado a uma profunda crise existencial – já retratada em carta pelo encerramento do Ano da Fé –, faz-nos repensar a centralidade da nossa vida e a forma com que temos dirigido o dom da liberdade que nos fora confiado pelo Senhor. Ela é como um brado para que haja desde agora um novo despertar nos corações, que venha a combater esta ideologia que descerra a esperança da humanidade e horizontaliza para o homem ideais de morte e desespero, versados numa concepção adversa aos valores éticos e morais, que são um suporte essencial para que possa a contemporaneidade se focar e deslumbrar o alvorecer de uma nova vida, firmada sobre as coisas que realmente podem conceber sentido às ações e pensamentos humanos.

Neste campo assaz secularizado que é o mundo hodierno, e que, desde que se propôs a aniquilar Deus da sua centralidade, tem posto os homens a saciarem-se com meios que nada mais fazem do que causar um ingente vazio e uma insaciável busca que resvala-se em prazeres e meios abreviados de felicidade, vemos o desvio no qual alguns dos nossos adentraram ao contemplarem uma tal concepção de felicidade onde há aflição e dor; vê-se glória onde há tristeza e vê-se moral onde há promiscuidade. Tudo isso faz com que o espírito de busca e o vazio constante se encontrem ainda mais presentes em seu âmago. De fato, temos em mente que este problema vem estendendo-se na vicissitude dos séculos e fazendo-se evidenciar agora ainda mais.

Mas, é sobretudo no cotidiano que vamos nos apercebendo dessa mudança brusca que afeta veementemente e destrói os ideais daqueles que pretendem colocar-se como pessoas a serviço desta retomada de valores e de convicções cristãs, éticas e morais. É necessário que se redescubra em primeiro plano que o Cristianismo, a Palavra de Deus, não é uma ideia, um conceito, mas é uma Pessoa, o Verbo Encarnado do Pai que se fez homem para gerar vida no seio da humanidade, vida eterna, onde poder algum jamais se infiltrará em detrimento de concepções vazias e buscas inúteis.

O Venerável Papa Pio XII
Já fomos advertidos pelo Venerável Papa Pio XII sobre as correntes de pensamento moderno que se infiltraram na sociedade para conturbarem o nosso tempo com ideologias anticristãs e abusivas: “De fato, enquanto por um lado perdura o falso racionalismo que tem por absurdo tudo o que transcende e supera a capacidade da razão humana, e com ele outro erro parecido, o naturalismo vulgar que não vê nem quer reconhecer na Igreja de Cristo senão uma sociedade puramente jurídica; por outro lado grassa por aí um falso misticismo que perverte as Sagradas Escrituras, pretendendo remover os limites intangíveis entre as criaturas e o Criador” (Mystici Corporis, 9).

A partir deste ideal podemos objetivizar uma maior consciência sobre estas mentalidades que procuram incrementar aquilo que, aos seus olhos, os valores tradicionais e a fé autêntica não puderam oferecer ao homem, sobretudo no que tange ao ratio ou, como definiria Agostinho, ao intellectus. Contudo, ao mesmo tempo em que combatemos essas correntes que visam elevar impropérios à fé, somos chamados a uma purificação de nossa consciência indagando-nos em que âmbito deixou a Igreja de fazer com que o Reino de Deus fosse mais conhecido e amado.

Conhece-te a ti mesmo.
“γνῶθι σεαυτόν – Conhece-te a ti mesmo”. Este aforisma cunhado no pátio (em grego: pronaos) do Templo de Apolo em Delfos, remota em um período bem anterior à chamada Era Cristã. Diógenes Laércio atribui a máxima a Tales, famoso poeta e orador da época. Por outro lado notamos que Antístenes nos seus escritos As sucessões dos filósofos atribui a Femonoe, poetisa grega mítica, embora tenha admitido que a máxima foi apropriada por Chilon. Porém, independente de quem a tenha escrito, este clamor é em si uma instigação para a busca do conhecimento da Verdade, imanente ao homem, e que tem sua vertente voltada ao Cristo Jesus que diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6).

Esta busca sempre esteve no cerne das discussões filosóficas, teológicas e morais. A todos apraz possuir a verdade. No decurso dos tempos os homens tomaram-se de uma insaciável sede de redescobrirem-se em um mundo onde a sua face fora lacunada por ideologias e tentativas falhas de uma auto definição. Como poderíamos então definir o homem diante deste drástico cenário e da face ofuscada por ele de Deus?

Vem-me à mente nesta hora as palavras de Santo Irineu, que de forma majestática já empenha-se a fazer esta correlação do dom de Deus para o homem e da necessidade de Deus que o homem possui naturalmente: “Gloria enim Dei vivens homo, vita autem hominis visio Dei – A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus” (Tratado Contra as Heresias, Lib. 4,20,5-7:Sch 100, 640-642.644-648).

Evidente é que esta necessidade não se traduz numa dependência escravizadora, que subjuga o homem a um poder celestial e que o faz desprover-se da sensatez e da razão; ao contrário, o poder de Deus tem caráter libertador e salvífico, tomado no sentido mais profundo e sincero da palavra: estimula o homem a fazer uso da razão e o faz conhecer os motivos da sua fé. Temos podido, outrossim, presenciar a deflagradora forma com que a mentalidade do homem tem se subtraído aos princípios da moral e da fé cristã. Podemos percebê-lo em primeiro plano por uma constatação de instabilidade na vida de fé do homem: em nossa sociedade temos tempo para tantas coisas, tempo para tudo que é supérfluo. Estamos ávidos em poupar tempo, mas quanto mais nos tornamos ágeis e com modernos meios de comunicação que a isto nos favoreçam, menos tempo temos para Deus e, consequentemente, para o próximo. Pude retratar isso em minha reflexão para a Solenidade do Natal de 2013.

Necessitamos recolocar Deus no centro da humanidade. Um mundo sem Deus está destinado à ruína, sua estrada é a perdição, seu desfecho é a morte, e o seu mal reside naquelas degenerações que se desencadeiam a partir da falta da sensibilidade humana para retratar a realidade divina que lhe é imprescindível. Neste aspecto, deveríamos aqui falar de uma liberdade bifurcada pelos sistemas e pelas ideais projetados pela procriação do antropocentrismo. O humano enquanto ser social depende de uma relação, não pode viver isolado, projetado em si, e neste sentido temos muito a aprender com as colocações antropocêntricas. Por outro lado este mesmo antropocentrismo não pode ser a causa de uma cessão na relação homem – Deus.

Desde que se propôs descentralizar Deus, tem se tornado o homem um artífice de concepções variadas sobre o querer e a liberdade enquanto fruto da sua vontade, portanto não respeitando limites e deveres. Projetou-se uma realidade simultaneamente religiosa em sua aparência mas mundanamente tomada por dentro. Enquanto “senhor de si” o homem não poderá jamais travar um diálogo – que é mais que necessário! – com o divino. Acaba a vida por tornar-se enfadonha se já não mais possui aquela Paz transmitida pelo Senhor ainda na noite da Ressurreição e sucedida imediatamente pelo Pentecostes joanino que se dá no sopro de Jesus e na entrega do Espírito (cf. Jo 20, 22).

Seria mais que necessário pensámo-lo como aquele que deve estar (compreender) em Deus. Para isto uma frase bíblica retrataria bem a realidade aqui aludida: “Si non credideritis, non permanebitis – Se não crerdes (se não vos agarrardes a Jahvé), não tereis apoio algum" (Is 7,9). Lutero tentou reproduzir a fórmula como: “Se não crerdes, não ficareis”. Ter apoio e ficar ganham aqui um sentido ulterior àquele que conhecemos. Este “apoio” do qual fala a Escritura deriva da mesma raiz de confiar-se, fidelidade, apoiar-se em algo ou em alguém, crer. Esta narração para além de uma visão espiritual apresenta em sua conjuntura uma análise antropológica do homem e, ao mesmo tempo, a necessidade que brota imanentemente como algo insubstituível para o peregrinar neste mundo mediante a instância suprema que é o divino. Embora não haja uma referência direta ao nome de Deus, temos, contudo, a terminologia que manifesta uma confiança em Jahvé. O profeta coloca na boca do Senhor estas palavras que alertam a uma consciência da Fonte de toda a força e sabedoria, pelo qual subsiste a fé.

A terminologia grega expõe uma forma diversa: “Se não crerdes, não compreendereis”.
Para muitos teólogos o verbo compreender deforma o sentido original da frase, fazendo com que a fé seja vista de uma forma intelectualizada: em vez de levar o homem a uma conformação da vontade de Deus, um apoiar-se Nele, leva-o a uma dimensão racionalizada. Com o devido respeito a algumas concordâncias no excesso de racionalização, não creio que esta mentalidade deva ter-se por tão correta, uma vez que no apoiar-se em Deus (crer) reside a compreensão do mistério divino. Obviamente que este mistério cognoscível não pode o homem abarcá-lo em seu todo, limitando-se ao que quisera o Altíssimo dá-lo a conhecer.

Esta mesma fé contrapõe-se de forma radical ao factível e a autoconfiança. É antes de mais um “lançar-se” nas mãos de Deus; depois é também uma realidade que não está sujeito ao feito, mas independe da ação humana; não equivale ao labor do homem para a concretização dos seus sonhos. Manifesta-se como algo que pertence ao não-feito. E porque não pode concretizar-se é que fundamenta-se como fé, confiança, crer. Com efeito, não vive o homem somente de suas potencialidades e dotes, move-se também pelos sentimentos, desejos e outras coisas que são irredutíveis ao conhecimento e que se orientam pelo sensus fidei ou pelos instintos.

Mas voltemos ao versículo do qual parece-nos que Irineu faz uma confirmação categórica: O homem que não crê  permanece sem apoio, desajustado e sem rumo. A fé entra como “bússola” da vida, a “visão” que fala o Santo Doutor. Se pensarmos na situação pós-moderna poderemos contemplar a tão falada “cegueira” que aflorou a alguns séculos desde que fomos tomados por uma cultura homocêntrica e egocêntrica, prevaricando o homem em si e em sua íntima relação com Deus.

A cultura de desvalorização também despontou de forma drástica como uma espécie de decreto da morte moral do homem. E este deve ser o primeiro passo para a busca da verdade: o conhecimento de si. Somente quando conhece-se como um ser frágil, passageiro, e dependente do seu Criador, pode o homem redescobrir os seus valores e caminhar para o encontro com a verdade que é a via legítima do conhecimento a Deus. Temos presente duas vertentes: conhecer a si e conhecer a Deus. O fechamento à realidade transcendental é também um descerramento ao conhecimento de si e dos traços imanentes do homem. Quando, ao contrário, está ele em Deus, compreende-se e assume o caminho que o orienta para a verdade, esta por sua vez diferenciada das falácias que embuçam-na com mensagens atraentes e mais cômodas.

O “conhecer-se” não é apenas um aforisma transcrito num templo, mas é o processo onde o homem coloca-se como real sujeito da criação e custódio dos bens que lhe fora confiado, ainda que outrora tenha transgredido a relação com Deus por meio dos primeiros pais. Conhecer-se é contemplar-se, não a partir do exterior, mas no interior, buscando sempre a sua posição na salvífica disposição da ordem da criação. Nas linhas precedentes Irineu ainda afirmou-nos algo que vem bem a notar-se nesta realidade: “o Verbo se tornou o administrador da graça do Pai para proveito dos homens. Em favor deles, pôs em prática o seu plano: mostrar Deus ao homem e apresentar o homem a Deus. No entanto, conservou a invisibilidade do Pai: desta forma o homem não desprezaria a Deus e seria sempre estimulado a progredir. Ao mesmo tempo, mostrou também, por diversos modos, que Deus é visível aos homens, para não acontecer que, privado totalmente de Deus, o homem chegasse a perder a própria existência” (Ibidem).

Já aqui evidencia-se a inconstância do homem sem Deus ou a perda de existência que o deforma enquanto ser de realidades diversas e de necessidades existenciais. Os gregos antigos criam que os deuses operavam pelas mais diversas formas e em diversas manifestações naturais. Assim tínhamos Zeus como deus do Olimpo; Hades, deus dos mortos; Hipnos, deus do sono; Gaia, a terra, chamada “deusa-mãe” e, por sua vez, mãe de Cronos, opífice da crueldade em devorar seus filhos, deus do tempo e pai de Zeus, o mesmo Cronos que devora ainda hoje o tempo dos filhos de Deus, que não mesuram os instantes cruciais, mas deixam-se levar por lapsos momentâneos de características não condizentes com o querer divino.


Aos transeuntes da história apraz-me recordar que Deus entra na temporalidade do homem por meio de Cristo, para que ele não se perdesse completamente. Mostra-se próximo e acessível ao tornar-se sujeito às situações humanas e temporais, não como pura dicotomia do mistério, mas essencialmente como uma plausível manifestação da sua identidade que São João definira como “amor” (cf. 1Jo 4,8). Portanto, podemos afirmar que o processo de autoconhecimento sem Deus é apenas uma racionalização de si, desprovida de quaisquer sentimentos e que o homem não alcança de per si a verdade, mas ela provém como dom de Deus para o conhecimento de si e Nele.

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