segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Cristo e a Igreja – Uma primeira aproximação,


Deus nos disse uma Palavra breve, uma única: Cristo. Felipe exclamou: “(...) mostra-nos o Pai e isso nos basta!” (Jo 14,  8 ). Nosso Senhor não lhe disse palavra sobre, mas pediu apenas que olhasse para Ele: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9). Também
“Quem me vê, vê o Pai”
quando se calou ante a pergunta de Pilatos sobre o que era a verdade (Jo 18, 38), aquietou-se, porém quão estrondosa foi a resposta daquele e naquele silêncio: a Verdade não é uma coisa, mas um “Quem”, uma Pessoa. Pilatos estava diante da Verdade. A resposta para Pilatos era Jesus em pessoa: “Eu sou a Verdade (Ego sum veritas)” (Jo 14, 6). Este é o sentido da palavra de Santo Agostinho. Em Seu Ministério, Cristo nada disse acerca de, disse-Se. Sua doutrina era Ele próprio: “(...) sua doutrina – diz Ele – é ele mesmo (suam doctrinam dixit, seipsum)”[1]. Neste sentido, numa prédica sobre o mesmo Evangelho de João, Santo Agostinho declara:

Cristo prega a Cristo (Christus Christum praedicat), porque se prega a si mesmo (quia seipsum praedicat).(...) Cristo se prega a si (Christus praedicat se).[2]

Também num Sermão Sobre o Credo, Santo Tomás afirma que Cristo não nos trouxe uma mensagem ou uma carta de Deus, sendo Ele próprio a Palavra, a Carta de Deus para nós:

Como dissemos acima, o Filho de Deus é o Verbo de Deus, e o Verbo de Deus Encarnado é como a palavra de Deus escrita em uma carta (Verbum Dei incarnatum est sicut verbum scriptum in charta).[3]

Do quanto dissemos, temos que, aderir à doutrina de Cristo é aderir à sua Pessoa, é unir-se vitalmente a Ele. Neste sentido, já dizia Penido, o maior dos nossos em Santo Tomás:

(...) O divino Mestre identifica-se à própria doutrina – “Eu sou a verdade” – enquanto o sábio se distingue da sua descoberta e o filósofo do seu sistema. Tanto assim que podemos adotar uma teoria sem lhe conhecer o autor, enquanto aceitar o ensinamento de Cristo é aderir à pessoa de Cristo: a sua revelação é ele mesmo.[4]

Ora, a doutrina a testemunhar não é apenas teoria senão vida, e vida que consiste em aderir a outra vida: a vida pessoal de Cristo. A pessoa de Platão ou de Aristóteles, por exemplo, distingue-se de sua doutrina. Não assim Cristo: “Eu sou o caminho, a verdade, a vida”, diz ele (Jo 14, 6). Aderir à verdade cristã é aderir à pessoa de Cristo, é viver de Cristo, ter em si o pensamento e o amor de Cristo. (...) Logo, testemunhar o cristianismo não pode reduzir-se a repetir fórmulas cristãs, nem mesmo a aceitar essas fórmulas. Testemunhar, é aceitar a pessoa mesma de Cristo, entregando-se a ele, observando o que ele prescreveu.[5]

E há mais. Conhecer Deus, em Cristo, é conhecer o próprio Cristo: “Ele é por tal forma o Revelador, que não apenas ouvindo-o as palavras, mas simplesmente conhecendo-o, conhecemos a seu Pai (Jo 12, 45; 14, 9)”[6]. E ainda:

Jesus não é apenas um amigo de Deus como Abraão, nem um simples mensageiro de Deus, como os profetas. Jesus Cristo é Deus propriamente. Logo podemos dizer em verdade: Deus é homem. Olhando a face de Cristo, é a face do Pai que contemplamos: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14, 9).[7]

Destarte, Nosso Senhor não é um simples profeta. Não é simplesmente um mestre. Ele não é um filósofo, nem somente um sábio. De fato, profetas, filósofos, mestres e sábios ensinam-nos o caminho que devemos seguir, o “por onde” devemos ir para podermos chegar “aonde” devemos chegar. Cristo não! Ele próprio é o CAMINHO “por onde” devemos ir e Ele mesmo é o “aonde” devemos chegar. Numa pregação sobre o Evangelho de São João, disse Santo Agostinho:

E nós para onde vamos, senão para ele (ad ipsum)?
E por onde vamos, senão por ele (per ipsum)?
(...) nós vamos para ele por ele (nos ad ipsum per ipsum).
(...) nós vamos por ele e para ele (...) (nos per ipsum et ad ipsum).[8]

Assim, Cristo não é apenas o Caminho que leva à verdade, senão que Ele é o Caminho e a Verdade. Cristo não é somente o Caminho que conduz à vida, mas Ele é o Caminho e a Vida! Em uma palavra: Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14, 6). Ele é a Salvação e não somente o salvador que nos leva à salvação, porque é estando nEle que estaremos salvos: “Permanecei em mim (...)” (Jo 15, 4). Ele é a Vida eterna, e é estando nEle que nos tornaremos partícipes da Vida que é Ele próprio. Di-lo-á o Santo Doutor de Hipona n’outro Sermão sobre o mesmo Evangelho:

O Senhor é a vida eterna (Ipse est vita aeterna), onde havemos de estar, quando nos receber para si. (...) Ele é a vida que tem (ipse est quod habet). A vida que está nele, é ele mesmo (quod vita est in ipso, ipse est in seipso). Quanto a nós, não somos a própria vida. Somos participantes da vida dele. Estaremos nele.[9]

 (...) Cristo é a vida eterna (Christus est vita aeterna).[10]

Cristo é o Céu e ir para o Céu é ir, por Cristo, com Cristo e em Cristo, para Cristo.


Mas onde, hoje, está Cristo? Como podemos, hoje, aderir à Sua pessoa? Como permanecermos unidos a Ele, hoje? Cristo é a Sua Igreja. A Igreja e Cristo não são duas realidades distintas, mas uma só. Não, está claro, por uma identidade de natureza. Não! Mas por uma comunhão vital, constituem uma única e mesma pessoa mística. De fato, a Igreja é a comunhão dos que creem na pessoa de Cristo com a pessoa de Cristo. É um Corpo, cuja Cabeça é Nosso Senhor e cujos membros são os fiéis. Da mesma forma que o homem inteiro não é apenas os seus membros, mas os seus membros e a sua cabeça, assim o Cristo total (“Christus totus”) é Nosso Senhor, Cabeça, e seus membros, a Igreja. É deste modo que a Igreja e Cristo formam uma única pessoa mística. Santo Agostinho celebra esta verdade noutro sermão Sobre o Evangelho de São João:

Congratulemo-nos e demos graças a Deus, porque somos, não somente cristãos, mas Cristo [non solum nos christianos factos esse, sed Christum]. Compreendeis, irmãos, estais convencidos de que a graça de Deus reside em nós? Admirai, regozijai-vos; tornamo-nos Cristo [Christus facti sumus]. [Si enim caput ille, nos membra; totus homo, ille et nos= Com efeito, se ele é a cabeça e nós os membros, o homem inteiro é Ele e nós] (...) A plenitude de Cristo é a cabeça e os membros. Quem é a cabeça e quem são os membros? É Cristo e a Igreja.[11]

Num Sermão sobre o Salmo XXVI, o Santo Doutor não é menos claro:

Daí se vê que somos o corpo de Cristo [Christi corpus nos esse] (...). E todos nele somos de Cristo, e somos Cristo [Christus sumus], porque de certo modo o Cristo Total é Cabeça e Corpo [totus Christus caput et corpus est].[12]

Santo Tomás, mais sucinto, remata: “Deve-se dizer que cabeça e membros são como uma única pessoa mística.”[13] Portanto, é somente unindo-nos à Igreja, e inserindo-nos nesta comunhão vital com Cristo e com os que creem em Cristo, que nos unimos a Cristo. Só desta maneira Ele poderá levar-nos, por Ele, nEle, para Ele.

Agora bem, unidos a Cristo pela Igreja, comungamos a Sua vida. Assim como um ato da cabeça é sempre também dos membros, porque, afinal, é um ato da pessoa, assim, quando entramos em comunhão com Cristo e a Igreja, que formam uma única pessoa mística, a vida de Cristo Cabeça e os Seus méritos passam a ser também a nossa vida e os nossos méritos, uma vez que nos tornamos Seus membros. É por isso que São Paulo afirma: “(...) da obra de justiça de um só (i.é., Cristo), resultou para todos os homens a justificação que traz a vida” (Rm 5, 18). Com efeito, como Seus membros, os Seus atos passam a ser os nossos e os nossos, enquanto nos mantivermos unidos a Ele, passam a ser os atos dEle em nós: “(...) sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Nosso Senhor fala desta estreitíssima solidariedade, quando se dirige aos seus, dizendo: “(...) vós em mim e eu em vós” (Jo 14, 20). Desta forma, a Igreja apresenta-se como um prolongamento da vida de Cristo Cabeça. E como seu Corpo, constituindo com Ele uma mesma pessoa mística, a Igreja torna-se possuidora dos méritos que Ele próprio conquistou no Calvário e é entronizada na comunhão trinitária, “(...) Eu neles e tu em mim (...)” (Jo 17, 23), diz Nosso Senhor ao Pai em sua Oração Sacerdotal. De sorte que o mistério da graça é indissociável do da Igreja, que, por sua vez, é um prolongamento do mistério de Cristo, o qual, por fim, introduz-nos na comunhão da Trindade. Estar em graça, portanto, é estar em Cristo, e estar em Cristo é estar em Deus Uno e Trino. Todavia, para se estar em Cristo é preciso estar na Igreja, Corpo Místico de Cristo. Santo Tomás explica com palavras fortes:

(...) a graça foi dada a Cristo não como a uma pessoa em particular, mas como ao chefe da Igreja (caput Ecclesiae= cabeça da Igreja), ou seja, de modo que dele redundasse para os seus membros. Portanto, as obras de Cristo são atribuídas tanto a si (tam ad se) como a seus membros (quam ad sua membra). (...). Conclui-se então que, por sua paixão, Cristo mereceu a salvação não só para si*, mas também para todos os seus membros (omnibus suis membris suam).[14]

* Não que Cristo precisasse ser salvo. Não! Mas a Pessoa do Verbo, que assumiu a nossa natureza, mereceu a salvação que conquistou no Calvário para a nossa natureza. De maneira que no Gólgota, misticamente, estávamos todos nós. Assim, São Paulo pode celebrar: “(...) pela obediência de um só, todos se tornarão justos” (Rm 5, 19). Vemos pelo verbo no futuro, “tornarão justos”, que é preciso ponderar. Cristo mereceu a salvação para os Seus membros. E o que é esta salvação? É a libertação do pecado? Na verdade, a libertação é o meio pelo qual obtemos a salvação, que é estar em Deus. Portanto, a salvação que Cristo nos conquistou mediante a Cruz é esta: Estar nEle. Mas só estamos nEle, estando na Igreja, Seu Corpo. Diz Santo Tomás:

Portanto, deve-se dizer que cabeça e membros são como uma única pessoa mística. Portanto, a satisfação de Cristo pertence a todos os fiéis como a membros seus.[15]

Ora, mas como acontece esta solidariedade entre Cristo e nós? Mormente através
Os 7 sacramentos.
dos sacramentos. Por eles, a vida de Cristo torna-se contemporânea a nós. Nosso Senhor disse que são os que comungam o Seu Corpo e Sangue que permanecerão nEle, que viverão por Ele (Jo 6, 56 e 57). São Paulo, aos Romanos, fala do Batismo como duma imersão no mistério da morte e ressurreição do Senhor (Rm 6, 3-4) e diz também algo tremendo: “(...) nos tornamos uma coisa só com ele (i.é., com Cristo) (...)” (Rm 6, 5). Ademais, o que se realiza no rito, traduz-se em vida. São Paulo vive a Vida do Senhor. Diz-nos estar crucificado com Cristo; fala-nos não ser mais ele quem vive, mas Cristo a viver nele (Gl 2, 20). Afirma-nos que traz em si os estigmas de Nosso Senhor (Gl 6, 17). Aos coríntios, relata:

“(...) por toda parte trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus seja também manifestada em nosso corpo (...). Somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, a fim de que também a vida de Jesus seja manifestada em nossa carne mortal” (II Co 4, 10-11).

Aos de Filipos declara que, para ele, viver é Cristo (Fl 1, 21). Assim, ser Igreja afigura-se como um viver da e na Vida que é Cristo. Ser Igreja é ser Cristo, porque só se é Igreja na medida em que se está cada vez mais unido a Cristo. Por conseguinte, a Igreja não se interpõe entre Cristo e os fiéis; ao contrário, inserindo-nos nela mesma pelos sacramentos, a Igreja une-nos intimamente a Cristo. Mais, torna-nos Cristo, porque faz-nos membros dum Corpo, que é ela própria e cuja Cabeça é Nosso Senhor. A Saulo, perseguidor dos cristãos, Nosso Senhor se identifica com sendo a igreja que ele (Saulo) persegue: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues” (At 9, 5). Tal é a união mística de Cristo e a Igreja!

Tamanha é esta comunhão vital que, no Sacramento do Altar, quando a Igreja oferece Nosso Senhor imolado ao Pai, sendo ela o Corpo dAquele que ela oferece, ela oferta-se a si mesma também. Diz com firmeza Santo Agostinho: “Tal mistério a Igreja também o celebra assiduamente no sacramento do altar, conhecido dos fiéis, em que mostra que se oferece a si mesma na oblação que faz”[16]. De fato, é neste sentido místico que São Paulo diz aos de Colossas: “(...) completo o que falta às tribulações de Cristo em minha carne pelo seu Corpo, que é a Igreja” (Col 1, 24). Com efeito, o fato de sermos membros de Cristo era uma verdade tão evidente aos primeiros cristãos, que o Apóstolo dos Gentios, aos de Corinto, pergunta como eles puderam se esquecer desta verdade: “Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo”? (I Co 6, 15), “(...) não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que recebestes de Deus”? (I Co 3, 19). Mas onde, enfim, realiza-se esta união? Num Sermão sobre o Credo, Santo Tomás ratifica: nos sacramentos. Asssim, ele considera como sendo interfaces dum mesmo mistério, Cristo e a Igreja, a graça e os sacramentos:

Os bens de Cristo são comunicados a todos os cristãos, como a energia da cabeça é comunicada a todos os membros. Essa comunicação é realizada pelos sacramentos da Igreja (...).[17]

A Igreja, por conseguinte, é Cristo em nós (Col 1, 27: “Cristo em vós”), e, sendo Cristo Deus conosco (Mt 1, 23), a Igreja é Deus entre nós, é Deus no meio de nós. Ela é Cristo, vivo e atuante, hoje. São Paulo diz com toda clareza à igreja que estava em Corinto: “Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? (...) Pois o templo de Deus é santo e esse templo sois vós” (I Co 3, 16-17). Sim, a Igreja é o sacrário do Altíssimo neste mundo! Ela é o ostensório de Deus. Não estamos a dizer, bem entendido, que a Igreja forme uma só pessoa física com o Verbo, com Deus. Não, em absoluto! Mas, por sua união vital, união mística com Cristo, que é Deus, pelos seus sacramentos, a Vida de Nosso Senhor torna-se presente nela, atual em Seus membros. De sorte que, pela Igreja, a Trindade como que “desce” do céu para habitar na terra, em nós, “Eu virei a vós” (Jo 14, 18), “(...) meu Pai o amará e a ele viremos e nele estabeleceremos a nossa morada” (Jo 14 23), e nós, por outro lado, como que “subimos” à Trindade: “Como tu, Pai, está em mim e eu em ti, que eles estejam em nós.” (Jo 17, 21). Sim, unidos a Cristo, participamos da Sua Vida ressurreta e, como membros duma Cabeça glorificada, com Ele assentamo-nos, desde já, decerto que em mistério, no Céu. Por isso, aos de Éfeso, São Paulo afirma com meridiana clareza que o Pai, “(...) com ele (i,é., Cristo) nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus (...)” (Ef 2, 6). Daí Santo Tomás poder dizer também sem pestanejar que “(...) a graça não é outra coisa senão um início da glória em nós (...)”[18]. De tal maneira a Igreja está irmanada a Cristo, que o mesmo Santo Tomás, citando Santo Agostinho (De Consensu Evangelistarum. 1, 35, 54), chega a dizer o seguinte acerca da Bíblia:

Deve-se dizer, com Agostinho, que “Cristo é a cabeça de todos seus discípulos, que são como membros de seu corpo. Por isso, tendo eles escrito o que Cristo fez e ensinou, não se pode dizer que ele (Cristo) nada escreveu absolutamente, uma vez que seus membros puseram por escrito o que a cabeça lhes ditou. Tudo o que Cristo quis que lêssemos a respeito de suas palavras e ações, ele lhes ordenou escrever, como se fossem suas mãos.”[19]

Também nesta ótica, podemos dizer que a oração da Igreja é um mistério cristológico! Na verdade, há um só que ora: Cristo. E sua oração é intercessão. Ora, não há meio termo: ou oramos por Cristo, com Cristo e em Cristo, ou não oramos ou nossa oração não é cristã, porque está escrito: “(...) ninguém vai ao Pai a não ser por mim” (Jo 14, 6). E o que é orar senão ir a Deus? Com efeito, como Cristo é a Cabeça, e nós, Seus membros, não é possível dizer que a oração da Igreja seja outra que não a de Cristo. Por isso, somente quando estamos verdadeiramente unidos a Cristo, verdadeiramente oramos. Mais: quando oramos, é Cristo que ora por nós, conosco e em nós. De fato, quando intercedemos, é Cristo quem intercede em nós, por nós. Intercede por nós, como nosso Sacerdote, e intercede em nós, como nossa Cabeça. E se lhe pedimos algo, na verdade, é Ele quem pede em nós, por nós, e é Ele também quem atende os nossos pedidos como nosso Deus. Santo Agostinho celebra este mistério num Sermão sobre o Salmo LXXXV, feito na vigília da festa de São Cipriano:

Ao nos dirigirmos, suplicantes, a Deus não apartemos o Filho, e ao rezar o corpo do Filho (i.é. a Igreja), não se separe da Cabeça (i.é., Cristo). Seja ele o único Salvador de seu Corpo, nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, que suplique por nós (oret pro nobis= ore por nós)*, ore em nós, e a quem enderecemos nossas preces (oretur a nobis= é orado por nós)**. Ora por nós como nosso sacerdote, ora em nós como nossa Cabeça e a ele oramos (oratur a nobis= é orado por nós) como a nosso Deus. Reconheçamos, portanto, na sua as nossas vozes, e sua vós em nós (in illo voces nostras, et voces eius in nobis= nele a nossa voz, e em nós a sua voz).[20]
A comunhão dos Santos.

A comunhão dos santos também é um mistério cristológico! Sabemos que somos “(...) membros uns dos outros” (Rm 12, 5) a formar “(...) um só corpo em Cristo” (Rm 12, 5). Ora, por formarmos um só Corpo, há uma estreita solidariedade e comunhão entre nós. De modo que, “Se um membro sofre, todos os membros compartilham o seu sofrimento (...)” (I Co 12, 26), mas também,“(...) se um membro é honrado, todos os membros compartilham a sua alegria.” (Co 12, 26). Há, portanto, na Igreja, uma circulação vital; há, pois, uma unidade entre os membros do Corpo de Cristo, de sorte que participamos da vida uns dos outros. Assim, sob certo aspecto, o que é meu é seu e o que é seu é meu também. Sim, o “pai misericordioso” tinha razão ao dizer: “(...) tudo o que é meu é teu (...)” (Lc 15, 31). Por quê? Exatamente por isso: “Há, portanto, muitos membros, mas um só corpo.” (I Co 12, 17). Que corpo é este? Responde São Paulo: “(...) vós sois o corpo de Cristo e sois seus membros (...)” (I Co 12, 27). Então: há alguma coisa sua que não seja minha, se formamos um só corpo? Há alguma coisa minha que não seja sua, se somos um só corpo? De fato, assim é na Igreja: o dom de um redunda em proveito de outro. Destarte, nela não há lugar para a inveja e para o ciúme. E se compreendermos isso, se não nos comportarmos como o “filho mais velho”, toda a riqueza da Igreja será nossa. Sim, porque a Igreja é riquíssima de dons e carismas, visto que, embora o Corpo seja único, os membros são muitos: “O corpo não se compõe de um só membro, mas de muitos” (I Co 12, 14). Santo Agostinho, consciente do tesouro que tinha em mãos, canta-o num Sermão duma forma impossível de não se entender:

A Igreja fala a língua de todos os povos! (...) Mas esse pergunta-me: E tu, falas todas as línguas? Sem dúvida; toda a língua me pertence, pois pertence ao corpo de que eu sou membro. A Igreja espalhada através de todos os povos fala todas as línguas. A Igreja é o corpo de Cristo, e neste corpo tu és um membro. Sendo tu membro do corpo que fala todas as línguas, podes estar certo de que fala todas as línguas.[21]

Se amas, tens alguma coisa. Se amas a unidade, o que tem qualquer prerrogativa, também a tem para teu proveito. Acaba com a inveja, e é teu o que eu tenho. E seu acabar com a inveja, é meu o que tu tens. A ferida desorganiza, a saúde estabelece união.[22]

Santo Tomás, sempre mais conciso, mas não menos claro, afirma: “E porque todos os fiéis são um só corpo, o bem de um comunica-se ao outro”[23].

BIBLIOGRAFIA


AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 7ª ed. Trad. Oscar Paes Leme. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. v. I.


_____. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. 2ª ed. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica Coimbra, 1954. v. II.


_____. Comentário ao Evangelho de São João: Luz, Pastor e Vida. 2ª ed. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1960. v. III.


_____. Comentário ao Evangelho de São João: A Ceia do Senhor. Trad. José Augusto Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1952. v. IV.


_____. Comentário aos Salmos. 2ª ed. Trad. Monjas Beneditinas. Rev. H. Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2005. v. I.


_____. Comentário aos Salmos. Trad. Monjas Beneditinas. Rev. H. Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1997. v. II.


PENIDO, Maurílio Teixeira Leite. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. 2ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1956.


_____. Iniciação Teológica III: O Mistério de Cristo. São Paulo: Edições Paulinas, 1968.


TOMÁS DE AQUINO. Exposição sobre o Credo. 4ª ed. Trad. Odilão Moura. São Paulo: Edições Loyola, 1997.


_____.  Suma Teológica. Trad. Aimom- Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001.






[1] AGOSTINHO. In Evanglium Ioannis Tractatus Centum Viginti Quatuor. XXIX, 3. (A tradução é nossa).
[2] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Luz, Pastor e Vida. 2ª ed. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1960. v. III. XLVII, 3. p. 262.

[3] TOMÁS DE AQUINO. Exposição sobre o Credo. 4ª ed. Trad. Odilão Moura. São Paulo: Edições Loyola, 1997. p. 45.
[4] PENIDO, Maurílio Teixeira Leite. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. 2ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1956. p. 276.
[5] Idem. Ibidem. p. 254.
[6] Idem. Ibidem. p. 10.
[7] PENIDO, Maurílio Teixeira Leite. Iniciação Teológica III: O Mistério de Cristo. São Paulo: Edições Paulinas, 1968. pp. 27 e 28 
[8] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: A Ceia do Senhor. Trad. José Augusto Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1952. v. IV. LXIX, 2.
[9] Idem. Ibidem. LXX, 1.
[10] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. 2ª ed. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1954. v. II. XXVI, 20. 
[11] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. 2ª ed. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica Coimbra, 1954. v. II. XXI, 8. pp. 125 e 126. (A tradução por nós proposta entre colchetes, parece-nos mais conforme ao original latino).
[12] AGOSTINHO. Comentário aos Salmos. 2ª ed. Trad. Monjas Beneditinas. Rev. H. Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2005. v. I. 26, 2.
[13] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Trad. Aimom- Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001. III, 48, 2, ad 1. 
[14] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, 48, 1, C. (Os parênteses são nossos).
[15]Idem. Ibidem. III, 48, 2, ad 1. 
[16] AGOSTINHO A Cidade de Deus. 7ª ed. Trad. Oscar Paes Leme. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. X, VI. p. 377. 
[17] TOMÁS DE AQUINO. Exposição sobre o Credo. p. 79.
[18] Idem. Suma Teológica. II-II, 24, 3, ad 2. 
[19] Idem. Ibidem. III, 42, 4, ad 1. (O parêntese é nosso).
[20] AGOSTINHO. Comentário aos Salmos. Trad. Monjas Beneditinas. Rev. H. Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1997. v. II. 85, 1. (Os parênteses são nossos. * Preferimos, entre parênteses, manter a terceira pessoa do singular do presente do subjuntivo. ** Preferimos manter também a construção da frase na voz passiva: “orado por nós”). 
[21] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. XXXII,  VII.
[22] Idem. Ibidem. XXXII, VIII.
[23] TOMÁS DE AQUINO. Exposição Sobre o Credo. p. 79.

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Sávio Laet é Bacharel-Licenciado e Pós-Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Mato Grosso [UFMT], cursou ainda algumas disciplinas teológicas [Revelação e Fé; Transmissão da Revelação e Teologia do Direito Canônico] no SEDAC [Studium Eclesiástico D. Aquino Corrêa]. Foi pesquisador do Grupo de Estudos Polis-Éthos [registrado no CNPq] da UFMT. Também participou como estudioso da filosofia medieval no grupo de “Pesquisas em Filosofia Antiga e Medieval” [com registro no CNPq] vinculado à mesma instituição.

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